segunda-feira, 28 de abril de 2014

Incansável afeto

Passados os dias de apreensão que vivera o País no início dos 60, momentos nos quais a confiança na proteção divina foi seu principal consolo, Dª Lucilia tomou aquela pena tantas vezes utilizada para transmitir palavras de afeto, que faziam os encantos do filho distante, para escrever uma missiva à sua cunhada, a madrinha de Dr. Plinio.
A última carta
Dona Lucilia não via Dª Teresa desde a viagem a Pernambuco, havia sessenta anos. No entanto, com ela mantivera sempre afetuosa correspondência.
Comovedoras são as linhas desta carta, a última escrita por Dª Lucilia antes de partir para a eternidade.
São Paulo, [abril de 1964]
Dona Tetê
Querida Tetê!
Penso que ainda não recebeste a carta que te escrevi dando notícias nossas. (...) Estava sofrendo muito com reumatismo nos pés, e nas pernas, e o fígado péssimo!... Só ando de braço com uma empregada, e uma bengala na outra [mão], e com dificuldade!...
Sinto bem que não possas vir ver como o teu afilhado trabalha pela nossa religião... Tem escrito diversos livros católicos, fala em toda parte, a convite de uns e outros, para falar nas recepções, etc., e não chega para tudo!!
Sinto-me tão enfraquecida, que penso que já não te escreverei mais!!
Recomenda-me com afeto a todos que ainda se lembrem de mim!
Com um afetuoso abraço, beija-te a cunhada que muito te quer,

Lucilia

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Inteiramente justa, extremamente bondosa…

Dona Lucilia aos 92 anos de idade
A vida de Dona Lucilia se passava mais numa sucessão de estados de espírito do que num conjunto de ações. Ela levou, única e exclusivamente, a vida de uma dona de casa de seu tempo: pequenas obrigações sociais e domésticas.
Embora possuísse uma constituição física forte, dona Lucilia era muito achacada de doenças, indisposições. Ela viveu 92 anos, mas sempre enferma e obrigada, portanto, aos cuidados, limitações e regimes de uma pessoa doente. É dentro disso que a alma dela se manifestava.
Lógica e bondade
Ela era uma pessoa que realizava, com precisão, exatidão, a aparente contradição de ser, ao mesmo tempo, muito bondosa e muito lógica. Em geral, se entende como bondade algo que entra, não no antilógico, mas, pelo menos, no não lógico.
Por exemplo, a oração em favor do adversário, à primeira vista, não parece lógica. Uma pessoa “ploc-ploc”1 poderia fazer o seguinte raciocínio: “Tal indivíduo é meu inimigo, quer liquidar-me, e está passando mal à morte. Se eu pedir a Deus para ele sarar, ele fica curado e depois me mete uma porretada na cabeça. Que sentido tem isso? Não digo que vá pedir para ele morrer — é o impulso de muitos —, mas não rasgarei minha túnica devido à tristeza, se ele falecer; tampouco vou rezar para ele viver.”
Esse é um pensamento que Dona Lucilia não aprovaria.
O fio do pensamento parece muito lógico, mas poderíamos perguntar a essa suposta pessoa: Por que você coloca limites à bondade de Deus? Ele não pode sarar de alma e corpo seu inimigo? Ou permitir, por exemplo, que ele venha em cima de você, para lhe fazer sofrer um tanto por amor a Deus? Assim você não acabaria conquistando uma alma para Nosso Senhor? No balanço estreito e vulgar de seus interesses pessoais, sua atitude é bem lógica, porém a premissa não está errada? Existe só você? Nas relações entre você e seu inimigo, não existe Deus? Ou é o Criador que existe principalmente, e ele e você são duas meras criaturas? Sendo assim, procure o interesse de Deus!
Senso de observação
A lógica de Dona Lucilia coincidia com um senso de observação curioso, o qual não fazia dela um Sherlock Holmes2. Mamãe muitas vezes se iludia a respeito das pessoas. Mas, às vezes ela pegava o lado ruim de um indivíduo com um discernimento espantoso, quando ele não tinha dado nenhuma manifestação disso.
Lembro-me de um amigo a respeito do qual ela me desaconselhou. Perguntei-lhe: “Mas, por quê?” Ela disse: “Pelo jeito de ele pegar no garfo...”
Eu não dizia nem sim, nem não, porque não queria que ela ficasse alarmada. Mas havia necessidade de apostolado com essa pessoa chegada a mim, e eu, portanto, a suportava de olho vivo. E percebia na prática de todos os dias como mamãe tinha razão.
Essa pessoa tem quase minha idade, passou a vida no teatro, ou seja, “teatrando” para o mundo, e já vai saindo para o outro lado do palco; egoísta, egoísta...
...não só para perceber defeitos, mas também qualidades
Dona Lucilia revelava seu senso, não só em pegar defeitos, mas também, às vezes nas pessoas mais censuráveis, algumas qualidades e se transformava em advogada delas.
Não eram qualidades comuns, que se alega comumente, “Ele é bonzinho”, mas do seguinte gênero:
Eu, por exemplo, “truculentizava” contra os defeitos de alguém. Raras vezes ela me dizia: “Você tem razão!”
Mas, quando havia cabimento, ela afirmava: “Filhão, é verdade! Mas, você note tal lado: apesar de tudo, ele é, por exemplo, muito franco. Muita gente, que não tem esses defeitos, é mais falsa do que ele. E essa franqueza tem seu valor. Você, quando falar de todos os defeitos dele, lembre-se de dizer também que é muito franco.”
E nisso ela manifestava seu senso de justiça. Nunca tomava uma atitude apaixonada, por onde se pudesse dizer que ela foi injusta com outrem. Absolutamente não. Sempre justa, justa, justa.
E a bondade vinha como acréscimo. Quer dizer, ainda que uma pessoa não prestasse para nada, fosse muito à toa, mamãe rezava por ela, suportava-a, enfim, fazia o bem que coubesse. Esse é o papel da misericórdia.
 Plinio Correa de Oliveira - Extraído de conferência de 4/2/1981
1) Expressão onomatopeica criada por Dr. Plinio para designar o defeito de certas pessoas que, desprovidas de intuição, minoram a importância dos símbolos e negam o valor da ação de presença. Querem tudo explicar por raciocínios desenvolvidos de modo lento e pesado, à maneira de um paralelepípedo que, ao ser girado sobre o solo, emite o ruído “ploc-ploc”.

2) Sherlock Holmes: Detetive fictício, famoso por seu astuto raciocínio lógico, sua capacidade de assumir qualquer disfarce, e seu uso da ciência forense com habilidades para resolver casos difíceis.

terça-feira, 15 de abril de 2014

Um ocaso glorioso

Reportemo-nos ao dia 21 de abril de 1968. 
Em  seu  apartamento,  Dona  Lucilia  encontrava-se desde há dias em seu leito, assistida por  um médico. Dr. Plinio achava-se, no quarto ao  lado, ainda convalescente, devido a uma terrível  crise de diabetes.
Por volta das 10 horas da manhã, o enfermeiro procurou o médico, avisando que Dona Lucilia não estava passando bem.
Manifestando certa estranheza, pois às 8:20 lhe aplicara uma injeção e nada fazia prever que a morte estivesse próxima, o clínico dirigiu-se imediatamente ao quarto dela.
Deitada, sem apoio em travesseiros, com os  olhos fechados e movendo os lábios como quem  rezava, Dona Lucilia tinha as mãos uma sobre a  outra, no peito.
Ao tomar-lhe o pulso e verificar quão lenta e  fracamente batia, o médico percebeu a proximidade dos últimos momentos. Pediu então ao enfermeiro que avisasse logo Dr. Plinio. Era necessário que ele se locomovesse sozinho e com  enorme esforço até o quarto de sua mãe que  partia para a Eternidade.
Nesse  meio  tempo,  Dona  Lucilia,  que  não  deixara de mover os lábios — sentindo em seu  coração haver chegado a hora da solene despedida desta vida — com decisão retirou a mão segura pelo médico, e com um gesto delicado, mas  firme,  sem  manifestar  esforço  ou  dificuldade,  fez um grande e lento sinal da cruz.

Depois, repousou no peito suas mãos alvíssimas, uma sobre a outra, e serenamente expirou  na véspera do dia em que completaria 92 anos… 

terça-feira, 8 de abril de 2014

A visita de um “jornalista”

Continuação do post anterior
Se fosse obrigado a sair do País, Dr. Plinio pensava em levar depois sua mãe para junto de si. Era necessário, portanto, providenciar a emissão do passaporte dela. Pediu então a um de seus jovens amigos que fosse à sua casa e a fotografasse para esse fim.
Foi assim que, certo dia, bateu à porta do “1º Andar” uma pessoa dizendo-se mandada por Dr. Plinio para tirar algumas fotografias dela. Na atmosfera pesada que reinava no Brasil, logo desconfiou Dª Lucilia tratar-se de um repórter. Tal impressão se acentuou ainda mais quando o visitante, enquanto tirava as fotografias, certamente para ser agradável, começou a lhe fazer perguntas sobre sua vida e sua família.
Quando mais tarde Dr. Plinio chegou a casa, ela assim lhe contou o ocorrido:
— Filhão, na sua ausência esteve aqui um repórter. Queria me fazer também uma entrevista por ser eu uma velha dama paulista de 400 anos. Então me pediu que lhe contasse minhas recordações de São Paulo antiga. Mas eu disse que sem o consentimento do meu filho, Dr. Plinio Corrêa de Oliveira, eu não falaria com jornalista algum!
Dava especial sabor ao relato a frase “meu filho, Dr. Plinio Corrêa de Oliveira”, proferida por Dª Lucilia num tom de voz que procurava expressar todo o respeito devido a ele.
Diante dessa encantadora ingenuidade de Dª Lucilia, na qual transparecia uma vigilância que a extrema idade não fizera esmorecer, seu filho respondeu:
— Mamãe, a senhora fez muito bem!...  

(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de Mons. João Clá Dias)

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Um período conturbado e cheio de incertezas

A esperança de um longo e ininterrupto convívio com seu filho não esmorecia na alma de Dª Lucilia, porém, quanto mais ela o desejava, mais essa possibilidade parecia ficar distante.
Apenas chegado ao Brasil, Dr. Plinio retornaria às suas intensas atividades em prol da causa católica no País, então atravessando um conturbado período de sua história, cheio de incertezas nos âmbitos social e político. À medida que a situação se agravava, Dr. Plinio se via obrigado a tomar algumas precauções. Fazia o possível para escondê-las aos olhos de Dª Lucilia, a fim de não perturbar, com perspectivas assustadoras, sua respeitável ancianidade. No entanto, não havia como ocultar algumas delas. Que fazer nessa situação?
Optou ele pelo mal menor, e fez o que julgava necessário, sem explicar as razões a sua mãe. Eram novas provações permitidas pela Providência, que Dª Lucilia aceitava com a resignação e a mansidão costumeiras.
“Ah! a minha árvore!?”
No entardecer de sua vida, Dª Lucilia gostava de rezar e refletir, sentada na antiga cadeira de balanço de Dª Gabriela. Ali, serenamente acomodada, costumava passar horas e horas, entremeando suas longas orações com a contemplação de um rendilhado de luz e sombras, movediço e suave, que se projetava nas paredes internas do escritório de seu apartamento. Com efeito, na calçada da Rua Alagoas erguia-se frondosa árvore cujas ramagens tocavam a janela do aposento, oferecendo sobretudo à noite, devido à iluminação pública, esse singelo espetáculo.
Entretanto, essa árvore, tão estimada por Dª Lucilia, tornava o apartamento de Dr. Plinio alvo fácil para possíveis atentados. Obter da Prefeitura Municipal a derrubada imediata dela figurava entre as várias medidas de segurança que ele resolveu tomar. E o fez sem dilação. Mas, para não aumentar a preocupação de sua mãe, não quis pô-la ao corrente do perigo a que ambos estavam expostos e nada lhe disse. Assim, qual não foi a perplexidade dela quando, certa noite, ao olhar para as paredes do escritório, viu projetar-se nestas a banal iluminação da rua, sem nenhuma daquelas belas sombras. Surpresa, exclamou: “Ah! a árvore, minha árvore, onde é que foi?!”
Porém, logo depois, pela reação das outras pessoas, percebeu que a ordem de cortar a árvore partira de seu filho, por alguma razão que ele não lhe pudera revelar. E nunca mais fez qualquer comentário sobre o fato.
Contudo, a gravidade da situação obrigaria Dr. Plinio a medidas mais drásticas.
O porta-jóias de “maroquin” vermelho
“Eu fui ocasião de uma provação não pequena para mamãe”, contou ele certa vez, a propósito de outro episódio ocorrido nessa época.
Em meio aos objetos herdados por Dª Lucilia, encontravam-se belas jóias, algumas das quais podemos observar em suas fotografias. Entre as que ela mais apreciava estavam um broche cravejado de brilhantes, uns brincos de turquesa, um colar de pérolas, bem como outros adornos que as senhoras daquele tempo usavam com alguma freqüência. Para guardá-las, havia ela comprado em Paris uma maleta de maroquin 1.
Estando a situação política do Brasil tão instável, Dr. Plinio começou a se preparar para a eventualidade de ter de abandonar rapidamente o País, a fim de garantir a sua própria liberdade de ação. Para tal circunstância precisava ter em mãos uma quantidade suficiente de dinheiro que lhe garantisse a subsistência no Exterior, por um período que poderia ser mais ou menos longo. Como a venda de algum de seus imóveis poderia levar muito tempo, viu-se na contingência de lançar mão das jóias de Dª Lucilia, preciosas não só pelo valor material, mas sobretudo porque a elas se prendiam inúmeras recordações. Resolveu sacrificá-las nessa situação extrema, certo de que sua mãe cedê-las-ia de bom grado, caso ele lhe pedisse.
Tal como ocorrera com o corte da árvore, Dr. Plinio nada disse à sua mãe, a fim de não a sobressaltar. Seria para ela uma grande aflição saber dos perigos que corriam. Assim, um dia Dr. Plinio entregou a maleta de maroquin com as jóias a Dª Rosée, para que esta as vendesse.
Algum tempo depois, Dª Lucilia deu pela falta da pequena mala, mas, percebendo haver sido Dr. Plinio que a retirara, não o interrogou sobre esse assunto, nem fez qualquer referência ao fato, de tal modo confiava nele. No fundo do olhar de Dª Lucilia, seu filho notava a pergunta: “Por que o Plinio não me conta a razão de sua atitude? Se ele precisava das jóias, não bastava me pedir?”

Era um mistério para Dª Lucilia, que, por respeito para com seu filho, nunca quis desvendar. Serenamente, suportou essa provação até morrer, poucos anos depois.
Continua no próximo post