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Dona Lucilia aos 92 anos de
idade |
A vida de Dona Lucilia se passava mais
numa sucessão de estados de espírito do que num conjunto de ações. Ela levou,
única e exclusivamente, a vida de uma dona de casa de seu tempo: pequenas
obrigações sociais e domésticas.
Embora possuísse uma constituição
física forte, dona Lucilia era muito achacada de doenças, indisposições. Ela viveu 92
anos, mas sempre enferma e obrigada, portanto, aos cuidados, limitações e
regimes de uma pessoa doente. É dentro disso que a alma dela se manifestava.
Lógica e bondade
Ela era uma pessoa que realizava, com
precisão, exatidão, a aparente contradição de ser, ao mesmo tempo, muito
bondosa e muito lógica. Em geral, se entende como bondade algo que entra, não
no antilógico, mas, pelo menos, no não lógico.
Por exemplo, a oração em favor do
adversário, à primeira vista, não parece lógica. Uma pessoa “ploc-ploc”1
poderia fazer o seguinte raciocínio: “Tal indivíduo é meu inimigo, quer
liquidar-me, e está passando mal à morte. Se eu pedir a Deus para ele sarar,
ele fica curado e depois me mete uma porretada na cabeça. Que sentido tem isso?
Não digo que vá pedir para ele morrer — é o impulso de muitos —, mas não
rasgarei minha túnica devido à tristeza, se ele falecer; tampouco vou rezar
para ele viver.”
Esse é um pensamento que Dona Lucilia
não aprovaria.
O fio do pensamento parece muito
lógico, mas poderíamos perguntar a essa suposta pessoa: Por que você coloca
limites à bondade de Deus? Ele não pode sarar de alma e corpo seu inimigo? Ou
permitir, por exemplo, que ele venha em cima de você, para lhe fazer sofrer um
tanto por amor a Deus? Assim você não acabaria conquistando uma alma para Nosso
Senhor? No balanço estreito e vulgar de seus interesses pessoais, sua atitude é
bem lógica, porém a premissa não está errada? Existe só você? Nas relações
entre você e seu inimigo, não existe Deus? Ou é o Criador que existe
principalmente, e ele e você são duas meras criaturas? Sendo assim, procure o
interesse de Deus!
Senso de observação
A lógica de Dona Lucilia coincidia com
um senso de observação curioso, o qual não fazia dela um Sherlock Holmes2.
Mamãe muitas vezes se iludia a respeito das pessoas. Mas, às vezes ela pegava o
lado ruim de um indivíduo com um discernimento espantoso, quando ele não tinha
dado nenhuma manifestação disso.
Lembro-me de um amigo a respeito do
qual ela me desaconselhou. Perguntei-lhe: “Mas, por quê?” Ela disse: “Pelo
jeito de ele pegar no garfo...”
Eu não dizia nem sim, nem não, porque
não queria que ela ficasse alarmada. Mas havia necessidade de apostolado com
essa pessoa chegada a mim, e eu, portanto, a suportava de olho vivo. E percebia
na prática de todos os dias como mamãe tinha razão.
Essa pessoa tem quase minha idade,
passou a vida no teatro, ou seja, “teatrando” para o mundo, e já vai saindo
para o outro lado do palco; egoísta, egoísta...
...não só para perceber defeitos, mas também qualidades
Dona Lucilia revelava seu senso, não só
em pegar defeitos, mas também, às vezes nas pessoas mais censuráveis, algumas
qualidades e se transformava em advogada delas.
Não eram qualidades comuns, que se
alega comumente, “Ele é bonzinho”, mas do seguinte gênero:
Eu, por exemplo, “truculentizava”
contra os defeitos de alguém. Raras vezes ela me dizia: “Você tem razão!”
Mas, quando havia cabimento, ela
afirmava: “Filhão, é verdade! Mas, você note tal lado: apesar de tudo, ele é,
por exemplo, muito franco. Muita gente, que não tem esses defeitos, é mais
falsa do que ele. E essa franqueza tem seu valor. Você, quando falar de todos
os defeitos dele, lembre-se de dizer também que é muito franco.”
E nisso ela manifestava seu senso de
justiça. Nunca tomava uma atitude apaixonada, por onde se pudesse dizer que ela
foi injusta com outrem. Absolutamente não. Sempre justa, justa, justa.
E a bondade vinha como acréscimo. Quer
dizer, ainda que uma pessoa não prestasse para nada, fosse muito à toa, mamãe
rezava por ela, suportava-a, enfim, fazia o bem que coubesse. Esse é o papel da
misericórdia.
Plinio Correa de Oliveira - Extraído de conferência de 4/2/1981
1) Expressão onomatopeica criada por
Dr. Plinio para designar o defeito de certas pessoas que, desprovidas de
intuição, minoram a importância dos símbolos e negam o valor da ação de
presença. Querem tudo explicar por raciocínios desenvolvidos de modo lento e
pesado, à maneira de um paralelepípedo que, ao ser girado sobre o solo, emite o
ruído “ploc-ploc”.
2) Sherlock Holmes: Detetive fictício,
famoso por seu astuto raciocínio lógico, sua capacidade de assumir qualquer
disfarce, e seu uso da ciência forense com habilidades para resolver casos
difíceis.