Ao lado de suas muitas e edificantes
qualidades de alma, reluzia em Dª Lucilia uma firmeza irredutível na defesa dos
princípios católicos. Com efeito, se alguém os ferisse de algum modo, ela se
colocava numa posição mais ereta, parecendo até aumentar de estatura, e, sem
perder a afabilidade, com tom de voz sempre calmo, logo atalhava:
— Não!... Isso não pode ser assim... —
e punha os pingos nos “is”.
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Dr. João Paulo |
Dr. João Paulo, pernambucano dos mais
genuínos, tinha um temperamento muito ameno. No dizer de Dr. Plinio, era o
homem mais pacífico que conhecera. Seus longos anos de vida conjugal com DªLucilia transcorreram na mais perfeita harmonia. Quando presenciava uma atitude
mais enérgica dela, dizia ao filho, a meia-voz, numa jocosa alusão a certo
sangue herdado por ela de remotos antepassados:
— Ih!... Esta senhora espanhola!... No
trato com a esposa, Dr. João Paulo era sempre muito atencioso. Tinha uma voz
sonora, de timbre agradável, e seu riso saudável era ouvido à distância. O
ambiente afrancesado à paulista que Dª Lucilia criava em torno de si, formava
um conjunto harmônico com a nota pernambucana e portuguesa, contributo de seu
esposo.
O vaso de cristal
Evidentemente, nos momentos de aflição
de Dr. João Paulo, a bondade sem par de Dª Lucilia se voltava de modo especial
para ele, com o desvelo de quem sabia penetrar no mais interno do sofrimento de
uma pessoa e ali colocar uma gota de suavizante bálsamo.
Uma tarde, ao voltar do trabalho, Dr.
Plinio encontrou seu pai sozinho no salão, com ar muito triste. Cumprimentou-o
como sempre: — Boa tarde, papai, como vai o senhor? — Bem, obrigado — respondeu
Dr. João Paulo melancolicamente. Seu filho, sem poder atinar com a razão de tal
atitude, dirigiu-se ao quarto de Dª Lucilia, onde a encontrou recostada e
rezando. Ao vê-lo entrar, ela lhe fez um sinal com o dedo para falar baixo e
pediu que se sentasse perto dela. Em seguida lhe disse num tom compassivo: —
Filhão... Você viu como o pobre de seu pai está aborrecido? Esbarrou, sem
querer, no seu magnífico vaso de cristal da Boêmia1, que caiu no chão e se
despedaçou.
— Meu bem, papai quebrou o vaso de
cristal?! — perguntou Dr. Plinio entre surpreso e penalizado, pois apreciava
muito aquele objeto.
— Sim, mas ele está sofrendo muito...
Bastaria uma palavrinha sua para fazer cessar a aflição dele. Você faria isso
por sua mãe?
Dr. Plinio, em qualquer circunstância,
perdoaria de bom grado a seu pai, e um mero vaso de cristal, por melhor que
fosse, era muito pouco para ser causa de tanto pesar. Diante da afetuosa
súplica de Dª Lucilia, dirigiu-se imediatamente ao lugar onde estava Dr. João
Paulo a fim de tranquilizá-lo e, sorrindo, disse-lhe que não se preocupasse,
pois o acidente, aliás todo involuntário, não tinha importância. Suas palavras
distenderam de imediato seu abatido pai, que recuperou o habitual bom humor.
Manifestações de afeto de Dª Lucilia,
como esta, excediam de muito os limites do lar. Se até em relação a
desconhecidos sua compaixão se fazia sentir tão viva quanto mais com os seus
familiares, próximos ou até longínquos.
Visita inesperada
Certo dia estava Dª Lucilia à mesa, em
meio a uma refeição, quando uma parente distante, a quem as provações da vida
haviam desalentado a fundo, tocou a campainha do apartamento.
A empregada, tendo atendido à porta,
veio pouco depois anunciar que estava ali Dª Fulana, querendo falar com Dª
Lucilia. Esta, conhecendo as tribulações pelas quais passava aquela pessoa,
interrompeu o almoço e foi solícita até o hall de entrada, acolhendo-a com
grande afabilidade.
— Oh! Fulana, como vai? Entre por
favor... Convidou-a a passar para a sala de jantar, ofereceu-lhe um lugar à
mesa e colocou-a inteiramente à vontade. Era tal a confiança inspirada por Dª
Lucilia que daí a pouco a visitante se animava a expor suas dificuldades e
dores. Recebeu dela — como esperava — todo o consolo e estímulo para
prosseguir, confiante na Providência Divina, pelas ásperas sendas da vida.
Mais uma vez, um conselho saído dos
lábios de quem seguia a lei de misericórdia do Divino Mestre, constituiu
poderoso auxílio a uma pessoa atribulada pelos reveses da vida. Este modo de
proceder, no conjunto das virtudes de Dª Lucilia, era mais um ponto de
resistência em relação aos desvios morais de seu tempo. Pois o mito do sucesso
levava muitos de seus contemporâneos a afastar-se com menosprezo de quem era
atingido pelo infortúnio, como se este fosse uma lepra cuja mera proximidade
pudesse contagiar...
1) Uma fina peça, presente
de Dr. Plinio a sua avó, Dª Gabriela
Transcrito, com adaptações,
da obra “Dona Lucilia”, de Mons. João S. Clá Dias
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