terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Refletir é viver (cont)

Tudo quanto é terreno se reporta a uma ordem superior
Em  Dona  Lucilia  transparecia  — possivelmente devido à preservação e inocência que a caracterizavam — um senso muito proeminente de que tudo quanto era terreno se reportava a uma ordem superior, onde encontrava sua explicitação.
 Isto sucedia em geral com as coisas  boas  ou  belas  —  bonum, pulchrum.
Não era possível tratar com Dona  Lucilia  sobre  qualquer  assunto, sem que dela se tivesse duas impressões. Uma era que ao solucionar  algum  fato  corriqueiro  da  vida,  deixava  ela,  provisoriamente,  um cume de elevadas reflexões para  descer até o problema; e outra era  que a propósito desse mesmo episódio, ela o elevava até as considerações mais altas. Era um movimento  reversível de alma.
De  forma  alguma  era  ela  uma  pessoa  que  vivesse  fora  do  mundo  real. O real e o cotidiano estavam inteiramente presentes em seu espírito, cumprindo com muito esmero todas as suas obrigações. Esmero que  revelava  um  gosto  pelos  pormenores, ornatos e detalhes. Por isso ela  possuía uma característica  de alma  pela qual, enquanto sua alma estava em altas considerações, era também capaz de tratar de acontecimentos concretos.
Dona Lucilia  considerava  tudo  sob  uma  luz  sobrenatural,  à  qual  reportava  todas  as  coisas.  Deste  modo, não havia nenhum momento  em que as coisas carecessem de valor superior, pois ela sabia ligar tudo a Deus, ou seja, realizar o contrário  do  que  apetece  o  espírito  materialista.
Essa forma de ser dela não seria estável de outra forma senão por amor a  Deus, e pelo fato de ela fundamentalmente não ser egoísta. Para isso contribuía também o ambiente em que ela  viveu, que era um tanto preservado, e  trazia algo das velhas tradições da ordem, mas era sobretudo um dom sobrenatural que ela soube desenvolver.
Uma opala iluminada pelo sol
Dona  Lucilia  causava  a  impressão  de  ser  uma  pessoa  de  temperamento tão irisado, que — bem se  poderia dizer — as cores variavam  conforme a posição. Cada impressão vivida, cada acontecimento, cada circunstância, determinava a manifestação de seu espírito de forma  singular, como uma opala na qual  incide um raio solar, fazendo com  que se desprenda um colorido não  muito  diferente,  mas  discretamente irisado.
Nela  conjugavam-se  firmeza  e  doçura, sem que alterasse em algo  o seu modo de ser, pois ela possuía  uma flexibilidade de alma por onde  adequava admiravelmente o trato a  cada pessoa com quem se relacionava, sabendo apanhar os lados razoáveis, dignos de estímulo e de respeito, não deixando nem por isso de  compreender  perfeitamente  os  lados débeis. Mas a forma de tratar  os lados débeis, participava da veneração que ela possuía aos aspectos  que  admirava,  e,  no  momento  de admirar, causava a impressão de  esquecer-se por completo da debilidade.
Esse modo de ser se exemplificava no trato dela para com sua mãe,  Dona Gabriela, personagem de ampla envergadura para aquele tempo.  Era uma senhora que ao fim da vida tocava nas debilidades da idade,  pois era quase nonagenária. A forma  de Dona Lucilia a auxiliar nas mínimas  coisas,  como  apanhar  um  lenço que caíra no chão e trocá-lo, era  feito com uma solicitude e uma alegria,  como  quem  se  deleitasse  em  praticar aquela atitude, que encantava presenciar tal cena. Quando Dona  Gabriela  tomava  alguma  atitude em que se fazia notar imponência, dignidade ou firmeza de autoridade, Dona Lucilia assumia uma posição de vigilância para ver se também os outros tinham feito como sua  mãe  desejava,  não  como  quem  cobrasse,  mas  esperando  a  participação na mesma admiração e, portanto, na mesma docilidade.
Mas concluído o trato com Dona  Gabriela,  caso  ela  fosse  chamada para tratar com uma criança da família que vinha, por exemplo, lhe trazer uma flor, Dona Lucilia era capaz de penetrar na admiração que a criança tinha pela  flor, cuidando dela como a criança  gostaria que ela cuidasse, levando  a sério os lados que a criança levava, e ao mesmo tempo proporcionando ao pequeno uma sensação de solicitude e proteção, por  onde  se  sentisse  completamente  penetrado e envolvido. E se nesse  momento  fosse  necessário  ministrar um remédio a um parente  que adoecera, ela o fazia com perfeição, entrando também nas dores do convalescente. 
Era um modo de ser embevecedor, mas nem sempre admirado inteiramente,  sem  que  jamais  ela  tenha denotado amargura por não se  sentir  retribuída.  Estes  são  alguns traços da opala...

Plinio Correa de Oliveira – Extraído de conferência de 14/1/1981

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Refletir é viver

Embebida pela convicção de que tudo quanto é terreno se reporta a uma ordem superior, Dona Lucilia possuía uma alma impregnada das mais elevadas realidades.
No decurso da História, não  raras vezes, é possível deparar-se com duas categorias de homens: a dos que se preocupam apenas com os aspectos materiais e concretos da vida, absorvidos pelas sucessivas impressões agradáveis do dia-a-dia; e a daqueles que  colocam seu bem-estar na cogitação  e na meditação.
Homens absorvidos pelo gozo da vida
Para o primeiro grupo, a única solução para os padecimentos produzidos pela culpa original, resume-se no  prazer. E cada época compõe o prazer a seu modo. Será para alguns a  deleitável sensação de ir a uma ópera,  enquanto  que  a  outros  agradará o ambiente de uma alta sociedade; outros, enfim, terão como encanto guiar freneticamente um automóvel; e ainda uns últimos — contrariando  o  livro  do  Gênesis,  quando  afirma ser a faina um castigo — farão consistir seu principal contentamento no frenesi pelo trabalho.
Entretanto,  brota  naturalmente  um problema para essa classe de homens:  não  possuem  momentos  onde lhes seja possível refletir. E, portanto lhes faltam ocasiões nas quais  compreendam a falência de suas vidas. Porém, mesmo se tais ocasiões  se lhes apresentam, fogem, pois suas existências consistem em fugir do  tormento. Contudo, se esquecem de  que, quando o homem foge do tormento, é ainda mais atormentado... 
Existem misérias morais tão grandes,  que  não  seria  descabido  dizer  que o indivíduo que busca trucidar  os momentos de reflexão, ora através do prazer, ora através de lapsos  de  desespero,  dificilmente  se  desvencilhará de seu erro, carregandoo até o fim da vida. E por muitas vezes ainda julgará ter sido feliz. Para  tais indivíduos a reflexão é uma loucura de poetas.
Gosto pela reflexão
Em  geral,  os  que  vivem  apenas  para o palpável constituem a maior  parcela  do  gênero  humano.  Entretanto, há outro estilo de mentalidades para o qual muitas vezes os próprios sofrimentos pelos quais têm de  passar concorrem para que eles tenham facilidade em refletir.
Esse gênero de pessoas comumente se põe problemas como o significado mais profundo das coisas, sua razão de ser, a explicação de acontecimentos  que  mais  os  impressionam,  embora nem sempre cheguem a penetrar problemas filosóficos.
Por  exemplo,  encontrando-se  diante de um belo edifício como o  Escorial ou Versailles, agem de modo  mais  reflexivo  do  que  propriamente  emocional.  Perguntam-se  qual  a  consistência e  profundidade  de todo aquele esplendor, e ainda se  não seria demasiada imposição tudo  aquilo que não permite outras considerações, tiranizando assim os sentidos externos.
Estas pessoas constituem uma minoria desprezada pelos demais, porém, na realidade, elas governam a  maioria.
Dona Lucilia: uma alma impregnada das realidades superiores

Muito  embora  não  fosse  uma  pessoa  filosófica,  Dona  Lucilia  tinha a alma impregnada dessas realidades superiores, fazendo com que  ela não vivesse meramente no mundo sensível. E no Brasil dos tempos dela, marcou-se  claramente  o  momento  em que  as  pessoas,  inclusive  nos  ambientes mais elevados, alteraram seu  modo de ser por um novo que surgia,  penetrado pela mentalidade que acima comentei. Mamãe elegeu para si o caminho da calma, da reflexão e da ponderação.
Continua

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Sumamente tranquila, sumamente vigilante ( cont)

Continuação do post anterior
Meu coração está à procura de Plinio e não o encontra
Inúmeros  episódios  como  esse se repetiram ao longo de  minha  vida.  Lembro-me  também  daqueles  momentos  nos  quais a severidade dela se manifestava. Por exemplo, quando  na  década  de  cinquenta  viajei à Europa.
Dona  Lucilia  ficava  muito apreensiva quando alguém  da  família  fazia  viagens  de  avião, pois naquele tempo os  aviões eram ainda muito primitivos. E atravessar o oceano de avião tinha seus riscos,  os  quais  ela  não  queria  que  seu filho passasse. Então, não cheguei a dizer a ela que ia à Europa.  Disse que ia ao Rio de Janeiro —  naturalmente  precisava  ir  ao  Rio  para depois ir para a Europa.
Pedi que Dona Lucilia me preparasse uma mala com muitas roupas,  pois talvez me demorasse um pouco  mais no Rio. Ela parecia estar tranquila, e por isso julguei que não desconfiasse de nada.
Contou-me um parente próximo,  muito  ligado  a  ela,  que  no  dia  seguinte ao da viagem, minha mãe pediu que ele fosse a minha casa. Este  parente chegou, e Dona Lucilia lhe  disse:
— Diga-me uma coisa: onde está  o Plinio?
— O Plinio?
E deu uma resposta evasiva. Entretanto, ela disse:
— Meu coração está à procura de  Plinio e não o encontra. Procuro-o  no Rio e ele não está; procuro-o em  Santos — lugares onde costumava ir  — e Plinio não está lá. Você precisa  me dizer onde está o Plinio.
Ele sorriu e disse a ela:
— Lucilia, o Plinio está na Europa.
— Como Europa?!
— Sim, ele resolveu ir para a Europa, passar alguns meses, por motivos de seu apostolado.
Então, mamãe chorou e rezou por  mim. Pouco tempo depois, chega para  ela  uma  cesta  de  flores  enorme  que  eu  tinha  encomendado,  calculando a hora aproximada em que ela  saberia da notícia, acompanhada de  uma carta sumamente afetuosa, dirigida a ela.
Não preciso dizer que ela gostou  muito da cesta. À tardinha, na hora do crepúsculo, chega outra cesta  de flores com outra carta minha. E  durante toda a viagem escrevi várias  cartas a ela — as quais eram invariavelmente respondidas.
Quando  voltei  —  Dona  Lucilia  sabia que estava chegando —, ela estava sentada numa poltrona, no hall  de entrada da casa. Abriu-se a porta  e eu a vi sentada no sofá.
Era costume mamãe levantar tarde, pois rezava muito à noite, indo  dormir às 3h da manhã. Consequentemente, acordava lá pelo meio-dia  e ainda ficava rezando na cama por  mais algum tempo, pois, como sofria  do fígado, ela devia ficar muito tempo recostada.
No dia de minha chegada, porém,  ela levantou-se mais cedo e já estava  inteiramente à minha espera. Quando entrei, abracei-a e beijei-a de modo efusivo. 
Dona  Lucilia  recuou  um  pouco  e fixou o olhar no fundo dos meus  olhos. Eu fiquei curioso de perguntar o que significava aquilo. Ela me  disse:
— Graças a Deus, você ainda  é  sempre o mesmo. Era a vigilância materna: um afeto cheio de vigilância, uma vigilância cheia de afeto.

Plinio Correa de Oliveira – Extraído de conferência de 27/10/1988

sábado, 7 de fevereiro de 2015

Sumamente tranquila, sumamente vigilante

Há quem confunda bondade com ingenuidade. Este é um equívoco não cometido por Dona Lucilia. Extremamente bondosa e afetuosa, ela formou seus filhos na mais intransigente escola da vigilância.
Qual foi a impressão causada  por  Dona  Lucilia no interior de seu filho Plinio Correa de Oliveira? Vejamos o que ele disse.
O amor materno
Recordando os mais antigos fatos da infância, momentos onde o filho começa a deter-se atenciosamente em sua mãe e tomar consciência de que ela possui uma relação especial com ele, lembro-me de me sentir envolvido pelo trato materno. Era uma  impressão  forte,  doce,  estável e cheia de luz. Dona Lucilia era sumamente tranquila, sem, entretanto deixar de ser íntegra e intransigente.
Embora sofresse muito durante a vida, mamãe possuía uma paz decorrente da convicção de que estava vivendo e sofrendo como devia, e que  o caminho trilhado por ela era o desejado por Deus. Este estado de alma proporcionava a ela uma enorme tranquilidade de consciência. Isso explica o fato de ela não se agitar  com coisa alguma.
Por  outro  lado,  Dona  Lucilia não tolerava o menor mal. Em qualquer circunstância ela exigia  que  as  coisas  fossem  inteiramente bem feitas. Nunca considerando o mal pelo seu lado mais divertido ou engraçado, ela não tolerava de nenhuma forma as coisas ruins. Isto dava a mamãe um bonito aspecto de alma pelo qual nunca a vi mentir, ou procurar fazer um sofisma, enganando alguém. Dizia a todos a verdade como era, cumprindo seu dever até onde necessário.  Isso  se  dava,  sobretudo,  em  relação aos filhos.
Nessa eu posso confiar!
Eu nasci muito fraco, e por isso,  quando  pequeno,  Dona  Lucilia cuidou de minha saúde o quanto pôde. 
Devido a minha frágil saúde, eu  tinha muita dificuldade em dormir à  noite. Então, acordava e via o quarto todo escuro. Dava-me uma  sensação de isolamento, de solidão, não tendo a quem dirigir-me.
Por esta razão, mamãe mandava  colocar  minha  cama  ao  lado da sua. Ao acordar, ficava  um pouco intimidado em despertá-la,  mas,  afinal,  chegava  um momento em que não era  mais possível ficar sozinho, e,  então, punha a ponta do dedo  em seu braço.
Como toda criança, eu não  pronunciava  bem  as  palavras.    E  tendo  apenas  dois  anos  de  idade,  queria  dizer  mãezinha,  mas dizia manguinha.
Às vezes, quando acordada,  ela logo percebia tratar-se de  mim,  e  começava  a  entreterme, até notar que estava sossegado. Então me deitava novamente na cama e ambos dormíamos. 
Porém,  em  algumas  ocasiões  —  pelo fato de estar indisposta ou simplesmente  por  ter  um  sono  muito  profundo — Dona Lucilia não acordava. E possuindo um temperamento categórico desde pequeno, eu passava para a cama dela — era um verdadeiro  “alpinismo”  —  e  tocava-a  para que despertasse.
Para ter bom êxito em minha “escalada”, eu tinha de me pôr de pé e  tentar galgar uma grade alta que havia em minha cama para evitar qualquer acidente...
Passando  para  a  sua  cama,  começava a chamá-la, porém não era  atendido.  Então  me  aproximava  e  abria os olhos dela, pois, assim, naturalmente acordaria.
Nunca aconteceu algo senão isto:  ela acordar, e imediatamente sorrir,  dizendo:
— Meu filhinho. É você?

Imediatamente ela se sentava na  cama, fazia com que eu me sentasse no travesseiro dela, e iniciava o  conto de uma história. Eu me sentia  penetrando  na  história  através dos olhos dela. Ela me queria muito  bem, e eu tinha noção — talvez confusa pela pouca idade, porém real  — desse afeto do qual era objeto. E  por ser cauto desde pequeno, pensava comigo mesmo: “Nessa eu posso confiar, porque ela me quer  bem.”
Continua no próximo post