quarta-feira, 29 de agosto de 2012

A infância  de    Lucilia  foi  especialmente  iluminada  pela figura de seu pai, Dr .  Antônio. Este era objeto de seu particular enlevo e veneração. Os desígnios e preferências dele eram lei!
Dr Antonio, pai de Dª Lucilia
Admiração pelas virtudes paternas
No  entusiasmo  que  nutria  pelo  pai, a menina não procurava tanto  as qualidades naturais, mas sobretudo as virtudes . Bem sabia ela que Dr. Antônio  era  um  excelente  advogado, hábil e inteligente conhecedor da  teoria e prática jurídicas, porém pouco a atraíam suas façanhas profissionais, em comparação com o prestígio  moral de que ele gozava.
Com efeito, quando anos depois  lhe faziam alguma pergunta sobre a  vida de seu pai, não ressaltava os êxitos nos negócios, mas sim os excepcionais predicados de esposo e chefe  de família; especialmente seu amor ao trabalho, a ausência de ambição, a proteção dispensada aos pobres e  sua profunda honestidade moral .
Esses valores que a pequena Lucilia tanto admirava passaram a compor sua própria concepção da existência: a trama da vida deveria ser tecida com os fios de uma superior  dedicação.
Por outro lado, começava ela a discernir o rumo que a humanidade em  geral ia tomando, e que se opunha  frontalmente a esta visão do mundo.  Colocada ante essa nova perspectiva, sua alma juvenil foi-se enriquecendo paulatinamente com as tonalidades lilases do sofrimento.
Exemplo de homem batalhador
O contraste entre o quotidiano do  comum dos habitantes de uma cidade na beleza e na vivacidade de suas  expansões iniciais, como era Pirassununga, e a elevação de espírito em Dr .  Antônio e Dª Gabriela, sua mãe, era  discernido por Lucilia naquela idade.
Em uma fotografia de família, seu pai aparece aprumado, externando o sucesso alcançado em sua carreira, mas em seu olhar se entrevê algo  de tristeza; uma espécie de decepção por perceber os rumos pouco alvissareiros que o Brasil de então ia tomando. Homem que enfrentava galhardamente a batalha do existir, representava ele um modelo que a opinião pública reconhecia como ideal, mas do qual muitos já se haviam despedido, embora com saudades .
É sob esse prisma que deveremos  considerar vários dos episódios que  serviram de marco à infância e adolescência de Dª Lucilia.
A última moeda a um mendigo
Ouçamo-la  contar  um  dos  fatos  que lhe marcaram a existência, iluminando-lhe os passos ao longo de  seus 9 anos, como um dos parâmetros da virtude da caridade: Papai era advogado e, no início, teve de lutar muito para manter a família. No entardecer de certo dia, perguntou a mamãe:
— Sinhara1, a despensa está cheia para nos manter e às crianças, durante os próximos dias?
Mamãe respondeu:
— Sim, está.
— Ainda bem — disse papai — porque só nos resta esta moeda (uma moeda de ouro) e nada mais. Vivamos até acabar a provisão...
Depois do jantar, segundo o antigo costume interiorano, foram à janela para olhar os transeuntes. Viram, então, de longe se aproximar, apoiado numa bengala, um pobre homem. Ao chegar diante da janela, tirou ele o chapéu e pediu uma esmola.
Papai lhe perguntou de que mal sofria.
— Sou tuberculoso — respondeu. Nem sequer ouso chegar perto das pessoas. Preciso comprar um remédio muito caro, sem o qual não vivo. O senhor não me poderia dar alguma coisa? De pouquinho em pouquinho junto o necessário, a tempo de ainda encontrar uma farmácia aberta.
Enquanto falava, o homem estendeu o chapéu à espera de algum auxílio. Papai, voltando-se para mamãe, disse: “Vamos fazer um ato de confiança na Providência?” Abriu uma bolsinha, pegou a última moeda de ouro e, com pontaria certeira, atirou-a no chapéu do mendigo, acrescentando: “Deus te acompanhe e sejas feliz!”
Radiante de contentamento, o homem se afastou, abençoando papai, o qual, por sua vez, calmo e confiante, comentou com mamãe: “Agora acabou... Não temos mais dinheiro algum, só contamos com Deus”.
Tendo dito isto, entrou em seu escritório para trabalhar, enquanto mamãe veio cuidar de nós, crianças.
Bem mais tarde, papai entrou na sala onde estávamos, dizendo a mamãe:
— Deus já teve pena de nós!
— Como? — perguntou ela.
— Acabo de receber um cliente novo, que me trouxe uma causa muito grande e boa. Pedi que adiantasse metade dos honorários. Olhe, pois, aqui está uma sacola cheia de dinheiro.
Não poderia haver  algo  de  mais  apropriado  do  que  essa  atraente narrativa, para  nos  introduzir  naquele  ambiente  familiar  que  ajudou  a  formar  a  mentalidade meiga e acolhedora,  mas  também  firme  de    Lucilia .  Penetremos  um  pouco  mais  nessa atmosfera, a fim de melhor conhecermos os paradigmas de tão bondosa alma . Uma de suas narrativas preferidas era a triste história de sua tia Heroína.
O rapto de Heroína e o lacrimejante romantismo
Irmã de Dr . Antônio, Heroína era  infeliz na casa de seu pai, como não  raro ocorre quando os filhos do primeiro  casamento  convivem  com  a  madrasta. Dr. Antônio, após ter organizado a vida e feito alguma economia,  pensou  ter  chegado  o  momento de atender às queixas de sua  irmã  e  proporcionar-lhe  condições  de uma inteira felicidade.
Em  combinação  com  as  escravas  da  casa  de  seu  pai,  em  São  Paulo, planejou secretamente uma  ardilosa e aventureira ação. Ele se aproximou da residência paterna, à noite, e após um discreto assobio — sinal convencionado — uma  escrava ajudou a mocinha a descer  por uma janela . Tendo-a colocado  na garupa do cavalo, Dr . Antônio partiu a toda brida rumo a Pirassununga .
Heroína deu-se bastante bem em  casa  do  irmão. Costumava  referir-se ao convívio com Dr . Antônio e Dª  Gabriela num tom afetuoso e cheio  de ternura: “A alma de minha mãe,  lá do Céu, me protegeu e me trouxe  até aqui . . .”
Um  certo  pitoresco  romântico,  entre inocente e ingênuo, não esteve ausente daquela nova vida em Pirassununga . Assim, por exemplo, na sala  de  visitas  da  residência  havia  um  belo  papel  de  parede  com  flores estampadas, que constituía especial atrativo para os colibris. Estes, entrando  pela  janela,  imaginavam-se  num  jardim  paradisíaco. Heroína tomou-se de carinho por um pobre e velho beija-flor que — decerto por suas vistas cansadas — se chocou contra o rígido revestimento da parede e caiu desmaiado ao solo . Apanhou-o e pôs-se a tratar dele, dando-lhe água com açúcar. Em determinado momento, a avezinha retomou alento e saiu voando. Heroína não  conteve  um  comentário: “Oh!  como é cruel esta vida! A gente protege, ajuda, e depois ele vai embora!  Assim também se passará comigo!”
Esse dito  foi  mais  uma  previsão  do que um desabafo, pois ela parecia ter herdado da mãe o signo da infelicidade. Nunca quis se casar, vivia numa profunda tristeza e morreu jovem. A pobre moça encarnava os  sentimentos — lacrimejantes e tendentes ao fúnebre — da atmosfera  romântica do século XIX.
Entremeando comentários à narração desses episódios, Dª Lucilia tinha alegria em ressaltar o alto valor  moral demonstrado por Dr . Antônio  no relacionamento com sua madrasta. Após o falecimento de Dr. Cândido, embora não se sentisse muito benquisto por ela, acolheu-a com  bondade, sustentou-a e inclusive tratou-a com desvelo durante uma doença contagiosa. A par desses aspectos tristes da vida dos Ribeiro dos Santos em Pirassununga, não faltaram outros, alegres e festivos, como aconteceu por  ocasião da visita do Imperador à cidade.


Dom Pedro II em Pirassununga
Em 1878, viajando pela Província  de São Paulo, Dr . Pedro II visitou a família Ribeiro dos Santos em Pirassununga . Conduzido por luxuoso trem  da Companhia Paulista, na viagem de  inauguração do ramal ferroviário, o  Imperador desceu na estação provisória, ainda de madeira, onde o esperavam as notabilidades locais.
Dona  Teresa  Cristina,  entretanto, não acompanhou seu imperial esposo, permanecendo no vagão, onde  recebeu    Gabriela,  que  levava consigo a pequena Lucilia . Procurando ser amável com a mãe, a Imperatriz disse à menina:
— Minha filha, eu conheci seu avô,  foi ele quem me ensinou a dançar.
Com  efeito,  por  ocasião  de  um  baile  na  Corte,  o  Dr. Gabriel  José Rodrigues dos Santos teve a gentil ousadia de convidá-la para dançar, o que esta nunca fizera. Instantes antes, com jeito e distinção, conseguira que a Imperatriz, defeituosa  de um dos pés, aprendesse a dar passos de dança sem que se lhe notasse  a incorreção no andar . Dona Teresa  Cristina se houve bem e o fato teve o  maior sucesso na Corte.
Durante o encontro na casa de  Dr . Antônio, Dom Pedro II — figura de aspecto patriarcal — trouxe  a  pequena  Lucilia  para  junto  de  si  e,  distraidamente,  enquanto conversava, passava a mão entre  seus  cabelos,  desfazendo-lhe  um a um os frisados cachos . Percebendo  desmanchar-se  aos  poucos  o  esmerado  penteado,  Lucilia deu mostras de querer protestar, mas encontrou — severo e fixo — o olhar de seu pai, a lhe insinuar  que  nada  deveria  dizer . . .

(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)

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