sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Viagens à Capital e ao campo

Embora Pirassununga estivesse experimentado um crescimento realmente digno de  nota, e já se pudesse encontrar, nas  numerosas casas de comércio, todo o  necessário para a vida diária, os Ribeiro dos Santos se habituaram a visitar a Capital, não só para rever os  parentes, mas também para comprar  objetos finos e importados .
Pescarias e passeios de landau
Era encantador o modo como   Lucilia, mesmo na extrema ancianidade, narrava com luminosa memória os múltiplos detalhes das viagens  da família a São Paulo: “Mamãe planejava com muito cuidado cada ida à capital da província. Tudo era muito bem feito. Havia umas canastras de vime, fechadas, nas quais eram colocados os alimentos, especialmente preparados para o percurso.
O caminho para a estação, as despedidas, os vagões, muito bem-arrumados, o pitoresco trajeto e, finalmente, a chegada à Capital, tudo nos  lábios de Dª Lucilia se tornava como  que feérico e legendário . Tudo narrava de modo tão leve e cativante,  que o ouvinte se sentia viajando com  ela . Era impossível à imaginação se  recusar a compor as cenas tão maravilhosamente descritas .
Convento da Luz
Em São Paulo, Dª Gabriela nunca deixava de visitar o Convento da  Luz,  levando  a  filha  pequena. As freiras abriam um pouco a cortina do locutório para ver a menina, conversar com ela e dar-lhe doces e outros presentes. Lucilia ficava muito  agradecida e, assim como aconteceu  com sua mãe, teceram-se entre ela e o convento liames de afeição que  perdurariam por toda a vida. Também  marcaram  suas  idas  a  São Paulo as visitas que fazia à casa  de um parente, o Dr. Clemente Falcão, no Vale do Anhangabaú . Para quem conhece esse lugar  tal  como  é hoje — todo de concreto e asfalto, perfurado por túneis, atravessado por viadutos, coalhado de edifícios,  imerso  em  poluição,  ruídos,  correria, multidões — talvez não seja fácil  conceber que, há pouco mais de cem  anos, ele guardava ainda ares bucólicos . No meio do vale, por entre a  verdejante  vegetação,  serpeava  um  piscoso riacho, que acolhia em suas  margens grupos de lavadeiras.
Para Lucilia, porém, o entretenimento predileto era o de pescar lambaris no riacho, diversão a que podia se entregar quando das visitas ao  mencionado parente, cuja vistosa residência ficava junto a uma das extremidades do viaduto do Chá. Não era esta, entretanto, sua única distração ao ar livre.
Os passeios da família, em elegantes e confortáveis carruagens conversíveis, do tipo landau, com a capota  abaixada nos dias de tempo bom, levavam-na também a distantes recantos da “São Paulinho”, frequentados  por  pessoas  da  sociedade,  curiosas  em verificar o crescimento da Capital . Lucilia nunca se esquecerá, por  exemplo, das idas às obras do Museu do Ipiranga, que lhe deram ocasião de brincar, muito mocinha ainda, junto aos alicerces da famosa e  monumental construção.
´Várzea do Carmo
Para  se  avaliar  até  que  ponto  o  modo  de  viver  em  São  Paulo  era  tranquilo  e  pitoresco,  houve  tempo em que — contava Dª Lucilia — de acordo com os caprichos de exótica moda, as damas da sociedade enviavam as criadas, à noite, à Várzea  do Carmo, para apanhar vaga-lumes,  que  iriam  enfeitar  seus  elaborados  penteados . . . Dentre os fatos ocorridos nessas viagens a São Paulo, destaca-se, por  seu inusitado, o que a seguir se narrará.




Tenra menina temida pelo demônio
A inocência de Lucilia, tão zelosamente conservada, incluía não apenas uma bondade sem par, mas a incompatibilidade  com  o  mal,  como  nos atesta um episódio dos mais interessantes da sua infância, contado  por um familiar.
Em fins do  século  XIX  estavam  em  voga,  em  determinados  círculos da alta sociedade, certas práticas  de espiritismo . As pessoas adictas a tal costume reuniam-se em torno de uma mesa para  consultar  entes  do  outro mundo . Um dia em que Lucilia fora levada em visita à casa de uns parentes, na Capital, coincidiu realizar-se ali uma dessas sessões.
No salão escolhido para o encontro, achava-se ela por acaso, brincando despreocupadamente num  dos cantos. Os participantes do ato presenciavam  em  torno  da  mesa  aos  inúteis esforços de um famoso “médium”,  a  implorar  ao  espírito  que  baixasse. Depois de muita insistência, o demônio resmungou pela voz do esgotado bruxo:
— Tirem a bobinha da Lucilia daqui…
O  fato  se  repetiu  várias  vezes,  noutras circunstâncias . Por sua índole passou ele para a história da família. Ao longo da vida de Dª Lucilia, diversas outras manifestações de desagrado dos espíritos infernais se farão presentes.

Em Santo Antônio das Palmeiras
Além das viagens a São Paulo, algo mais havia que encantava e distraía a pequena Lucilia: os passeios  à fazenda de seu pai.
Em 1877 Dr. Antônio separou a  parte que possuía, com Dª Gabriela, na fazenda das Taipas do Morro  Grande, dando-lhe o nome de Santo Antônio das Palmeiras. Esta área estende-se do alto da Serra do Atalaia  — de cujo cimo, a 104 metros de altitude,  pode-se  descortinar  vasta  e  lindíssima paisagem — até um vale  no qual corre um cristalino riacho.  Próximo a este, surde a única fonte  de água mineral da região.
Desde criança, Lucilia gostava de  admirar  os  belos  panoramas,  apreciando muito a vida do campo . Mas,  não faltavam ali, a contrastar, aspectos desoladores, que ela não omitirá  nas descrições feitas mais tarde. Por exemplo, o triste desfile dos escravos diante do feitor, no fim do dia, junto à escada de acesso à casa principal. Quando Dr. Antônio estava presente, pediam-lhe a bênção, dizendo  no seu dialeto peculiar: Sus Cris, que queria dizer “louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo”.
O cair da noite sobre a mata cerrada,  ao  som  daquele  melancólico  Sus Cris e do canto de alguma cigarra, tinha um ar de desolação que, para Lucilia, se acentuava ainda mais  quando ela percebia estar algum escravo  sendo  castigado.  Geralmente, aliás, por ele logo intercedia… 
 (Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)

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