terça-feira, 11 de setembro de 2012

Pitorescas aventuras domésticas

Em  suas  descrições  da  época em que viveu no interior  paulista, Dª Lucilia ressaltava a confiança mútua e a honestidade das pessoas de outrora, e por isso  jamais se esquecera dos pormenores  do fato narrado a seguir .
Um amigo organiza a fazenda de Dr. Antônio
Certo dia, estando o Barão  de  Araraquara 1  na  fazenda  de  Dr .  Antônio    de  quem  era  grande  amigo  — quase à hora de  se  despedir,  disse  com uma confiança oriunda do tempo em que tinham  sido colegas na juventude:
— Totó, este seu empreendimento está uma tristeza. Você não entende nada da montagem de uma fazenda. Provavelmente deve ter talento para administrar, mas não para organizar. Por exemplo, a barragem que você construiu  deveria ser de outro jeito e aquela  plantação, feita noutro tipo de terreno. Creia-me, dá pena ver a sua fazenda.
— Bem, o que você quer? Não sei  fazer de outra maneira — respondeu Dr. Antônio. —Proponho-lhe um negócio. Durante cinco anos você me dá uma boa  quantia de dinheiro para eu aplicar em sua fazenda e administrá-la. Nada cobrarei pelo trabalho. Não é preciso passar documentos entre nós. No entanto, exijo como condição que você não  ponha os pés aqui enquanto durar o  acordo, do contrário você quererá interferir e vai me atrapalhar. Deposite regularmente o dinheiro no banco para que eu o vá utilizando, ao cabo dos cinco anos você encontrará outra  fazenda, de maior valor, e nosso negócio estará feito.
O  barão nunca prestou contas.Durante os cinco anos combinados, recebia o dinheiro religiosamente em dia e o aplicava sem dar a  mínima  satisfação. Encontrava-se  frequentemente com Dr. Antônio, conversavam, faziam-se cada  vez mais íntimos amigos. Nunca trocavam  uma   palavra sobre o assunto. Era como se tal fazenda não existisse.
Um belo dia, passado o prazo estipulado entre ambos, o barão avista-se  com  Dr. Antônio e lhe diz:
— Totó,  você  ainda  não me disse nada sobre sua fazenda. Quer visitá-la amanhã? De minha parte o negócio está terminado e, de qualquer modo,  amanhã lhe entregarei as chaves.
No dia seguinte ambos viajaram  até a fazenda e a encontraram perfeitamente ordenada, deixando  Dr.  Antônio em extremo  contente e agradecido.
A Salve Regina na solidão das matas
Com verdadeiro comprazimento,  Dª Lucilia contava que seu pai, ao se  deslocar à noite — nas idas e vindas  da fazenda, ou em viagens profissionais — pelas adustas e perigosas matas do sertão paulista, sempre acompanhado  de  dois  ou  três  homens,  gostava de cantar a Salve Regina. 
Certa feita — dizia ela — o Barão de Araraquara, cavalgando pelas cercanias de Pirassununga, onde ia encontrar-se com Dr. Antônio, distinguiu à distância uma sonora voz a entoar o hino religioso. Virando-se para o capataz que o seguia, comentou:
— Só pode ser o Totó. Não há outro homem nesta região que cante à noite, num lugar desses, a Salve Regina em latim!
A morte do cordeirinho
Seria  um  erro  imaginar que a admiração da jovem Lucilia pelos lados enérgicos do pai, inclusive quando aplicados à sua própria educação, fosse menor do que a tributada por ela  às outras qualidades . Assim, narrará, até avançada idade, o que se passou após ganhar do pai o belo presente de um cordeirinho. Lavou-o, secouo e o adornou com lindos laços de fita. Tratou-o com todo o carinho, até o dia em que um respeitoso escravo lhe confidencia:
— Sinhá pequena, eu queria dizer uma coisa para a Sinhá ficar preparada. Sinhô — o pai dela — vai mandar matar o cordeirinho amanhã. Eu só queria avisar.
Ela então diz:
— Não é possível! Você está mentindo, papai não faria uma barbaridade dessas!
Sorrindo, ele responde:
— Sinhá pequena, é assim que vai  ser.
Sem perder um minuto, ela vai correndo ao escritório do pai e lhe diz, banhada em lágrimas:
— Papai!... Então papai vai matar o cordeirinho? O senhor deu mesmo essa ordem? Será possível?
— Minha filha, é verdade.
— Mas, como? Ele é tão bonzinho, tão bonitinho, eu quero tão bem a ele . . .
— Lucilia, deixe de ser ingênua.  É preciso enfrentar as coisas como elas são. Isto será bom para que você perca esse sentimentalismo. Sentimento, sim; sentimentalismo, não.
Foi irredutível. No dia seguinte, lá foi o cordeirinho fazer parte do cardápio.
Dona  Lucilia  sempre  mencionará  o  fato  como  prova  da  bondade  do pai, que usou um remédio duro,  vencendo o próprio afeto paterno, a  fim de curar a tendência para o sentimentalismo de uma menina daqueles tempos românticos.
Após esse passeio à fazenda, retornemos com a pequena Lucilia a  Pirassununga.
A capa do cigano-chefe
Como se sabe, outrora era muito  difundida  uma  concepção  lendária acerca dos ciganos. Estes percorriam as cidades e o campo, às vezes acompanhando algum espetáculo circense, em geral vistos com certa desconfiança por terem seus costumes e regras peculiares.
Menina ainda, quando os ciganos passavam por Pirassununga, Lucilia observava à distância os movimentos deles, através do buraco de uma fechadura. Aconteceu, porém, que devido à prestação de serviços advocatícios de Dr. Antônio a um chefe de ciganos, este se tornou seu amigo e cabo eleitoral, passando a frequentar o escritório do pai de Lucilia, contíguo  à  residência da família.
Num dia de eleições, em que a casa e o escritório de Dr. Antônio formigavam de amigos políticos, Lucilia encontrou sobre o canapé da entrada a capa do referido chefe . Era uma espécie de poncho forrado com  tecido  vermelho que lhe pareceu muito  elegante. Atraída pelo manto, analisou-o, acariciou-o e acabou por vesti-lo, dando uns passeios pelo interior da residência. Qual não foi o espanto de sua mãe, Dª Gabriela, ao vê-la revestida daquele traje: sem demora o retirou dos ombros da filha, aconselhando-lhe nunca mais tocar nos objetos dos visitantes…
Este pequeno mas quão pitoresco episódio é ilustrativo do ambiente de domésticas aventuras que marcaram a vida provinciana e povoavam a infância de Lucilia.

1) Estanislau José de Oliveira, influente lavrador de café na região da atual  Analândia, interior de São Paulo .

(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)


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