quinta-feira, 9 de junho de 2016

Martírio de alma III

Conclusão dos posts anteriores
Longa e tranquila solidão
E mais deleitável era-me encontrá-la sozinha; quando ela não percebia que eu estava entrando em casa, eu a via na sua longa e tranquila solidão. É principalmente disso que me lembro, quando olho para o Quadrinho1. A veneração que tenho pelo Quadrinho resulta, em parte, do fato de que ele a apresenta exatamente assim.
Olhem para o Quadrinho e notarão que ele não exprime em nada uma tendência de alma definida. É uma espécie de benevolência distinta para o que der e vier; voltada para todos, mas no momento para ninguém. Ela está apenas olhando.
Há ali duas atitudes diversas que se ombreiam de tal modo que — para os meus olhos de filho, pelo menos —, constituem um encanto: é o tão completo dar-se, com uma distinção por detrás, que diz afavelmente: “Conta, peso e medida em tudo, está muito bem.”
Esse isolamento em que ela vivia, creio que se deu gradualmente. Tenho uma certa impressão de que, quando menina e o ambiente todo era muito menos revolucionário do que é hoje, ela não sentiu esse colapso, esse choque com o ambiente, mas com uma ou outra pessoa dentro do ambiente, e com uma ou outra atitude singular de certos indivíduos. Então, com algumas pessoas ela demonstrava boa vontade, mas cujo todo não lhe agradava; era o contrário do que ela achava que deviam ser. Mas havia também atitudes dissonantes, inesperadas, tomadas por indivíduos a quem ela queria bem, e que a chocavam.
E isto dava a ela uma ideia triste desta vida onde coisas assim são possíveis. Depois, com a evolução geral das coisas, o estilo de afetividade dela, que era o estilo em curso, digamos, até a primeira década da República — portanto, até 1900 —, passou gradualmente a ficar menos em curso.
Martírio da alma
Então ela, que era muito benquista anteriormente, passou a ser menos querida. Embora ela continuasse a querer bem aos outros, passou a ser ignorada até o final da sua vida, e ficou completamente posta à margem e enigmática para todo mundo; inclusive para as pessoas contemporâneas dela, que foram adquirindo os novos modos de ser e o novo estilo de afetividade. Esse isolamento e essa incompreensão graduais iam dando a ela uma compreensão cada vez maior do que era a vida, o ser humano, a realidade; e determinavam um refugiar-se axiológico no Sagrado Coração de Jesus e em Nossa Senhora, que lhe concediam aquilo que ela não tinha.
De maneira que houve uma espécie de gradualidade do martírio. Mas martírio ao pé da letra, porque era uma dor sofrida pela fidelidade a uma determinada atitude de alma e, portanto, um exílio branco, que nem por isso deixava de ser um exílio muito real, progressivo, injusto, sem motivo e caminhando cada vez mais para a incompreensão total. E ela sempre fiel à sua posição. Isso caracteriza bem o martírio da alma.

Plinio Correa de Oliveira – Extraído de conferência de 13/1/1981
1) Quadro a óleo, que muito agradou a Dr. Plinio, pintado por um de seus discípulos, com base nas últimas fotografias de Dona Lucília. 

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