quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Que alma!


Uma coisa que eu recordo, por exemplo, com uma saudade enorme: eram as mãos, talvez um pouco pequenas para o tamanho dela, com dedos compridos, muito alvas, bem feitas, proporcionadas. 
A pele era de cetim como o temperamento dela. Tinha um modo de mover as mãos com tanta dignidade, com tanta estabilidade, com tanta beleza e elegância, que eu ficava olhando para a mão, quando ela me folheava algo.
Criança, eu pensava: “Que alma e que coração!”
Por exemplo, na estação de águas, ela se recolhia após o almoço, fechava a veneziana do quarto e criava uma penumbra. Eu pensava: “É verdade que há uma certa analogia entre esta penumbra e a alma dela, tão feita de verdade e de recolhimento, que se diria que ela é para Deus uma veneziana. Eu gostaria de estar ao lado dela; ela quieta e eu também, mas eu olhando as duas penumbras”. A penumbra que entrava pela janela e a penumbra que havia na alma dela.
Quando eu ia à Igreja do Coração de Jesus, vendo a penumbra que se formava no interior dela, dizia: “Como se parece com ela”. E quando estava com ela: “Curioso, como parece com a Igreja do Coração de Jesus!” Formava um só todo.

Plinio Corrêa de Oliveira

sábado, 24 de novembro de 2018

Nunca recusou a cruz


Em nenhum momento, das recordações dela, do que ela me contava do passado dela, ela teve a menor recusa da cruz.
Mas a cruz ia se manifestando progressivamente maior do que ela imaginava. E nisso havia uma certa surpresa que ia cada vez mais fundo, mais fundo, mais fundo na alma dela. E assim ia se formando no espírito dela a ideia de que a vida tomada a sério não era senão um grande carregar de cruz. Em dado momento, a gente vê que ela ficou pasma de perceber o quanto a cruz estava em sua vida.
Mas ao mesmo tempo ela era muito confortada pela ideia de que Nosso Senhor Jesus Cristo tinha sofrido incomparavelmente mais, com paciência e com amor. Isso fazia muito bem a ela e modelava o seu coração para sofrer dessa maneira, de modo tal que no perfil moral dela não só foi se delineando o traço dominante da sofredora, mas foi se delineando uma coisa paradoxal muito bonita. Por ser sofredora, quer dizer, compreendendo o sofrimento e tendo coragem de tomá-lo sobre si, ficou muitíssimo capaz de ajudar os outros a sofrerem.
Então, era uma paciência com as situações, com as coisas, com as pessoas, uma coisa incalculável. Nunca resmungando, nunca protestando, nunca nada! Mas com a deliberação de sofrer com resignação até o limite de arrebentar e de compreender que o sentido da vida era a cruz.
Plinio Corrêa de Oliveira – extraído de uma conversa 11/02/1990

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Peregrinando dentro dos olhos


Eu creio que a coisa mais pungente da vida é quando a gente conheceu algum grande olhar ou alguma grande alma e a gente, de repente, se dá conta que aquele olhar se fechou para sempre e a alma foi-se para Deus. E que aquilo que a gente viu não verá mais, não aprofundará mais, não conhecerá mais como deveria ter conhecido e que daí por diante é só na eternidade.
Mil vezes eu peregrinei dentro dos olhos de mamãe, mas quantas e quantas vezes; e a partir de quantas portas deste olhar! O olhar dela quando me olhava, o olhar quando eu via que ela estava olhando para dentro do meu olhar, o olhar dela quando rezava, o olhar dela visto de lado, o olhar dela visto por detrás, em que era por imponderáveis que se percebia seu olhar. E quando ela faleceu eu me pus esta pergunta:
"Agora, para esta vida terminou, acabou, nunca mais eu passearei dentro deste olhar e nunca mais desvendarei esta alma".
Agora, pergunta-se: "você aproveitou inteiramente o tesouro? Você olhou tudo que tinha que ver, e você chegou até o conhecimento último? Você será capaz de fazer a viagem retrospectiva e completa através dos véus sucessivos?"
E eu me fiz a pergunta distendido e calma no meio do pranto da morte. E com toda a calma respondi a mim o seguinte: "Sim, e inteiramente. Talvez ela tenha morrido a tempo para me comunicar os seus últimos fogos de olhar em que a luz da vida bruxuleava, mas que ainda tinha belezas novas para me comunicar. Mas também acabou, eu tenho tudo, levo tudo, oxalá eu assimile tudo!"
Assim é que a gente olha sucessivamente para os olhares, as coisas que esta vida se nos apresenta. Isso é viver. E não fazer isso é não viver. E quem nunca pensou, nem viu e não teve coisas destas em vida, este eu tenho dificuldade de explicar para mim mesmo como ele estará pronto para a visão beatífica. Porque a visão beatífica é isso: olhar Deus face a face e peregrinar dentro dEle e sempre, sempre, e imutável, e novo para nós. Afável, majestoso, acolhedor, e nós dentro dEle superpondo os aspectos sucessivos, para formar uma cognição que nunca cessará. Porque jamais O conheceremos totalmente. Isso será a nossa alegria no Céu.
Plinio Corrêa de Oliveira- extraído de conferência 23/12/76