terça-feira, 13 de outubro de 2015

Modo de tratar os pequenos, os fracos e os deficientes - I

Em relação a todo mundo Dona Lucilia era afável, mas para aqueles que se encontravam num estado de debilidade ela manifestava um grau de afabilidade estudado, não no sentido acadêmico, mas calculado pelo afeto. Tal era sua bondade que ela possuía certa predileção pelas pessoas portadoras de alguma deficiência.
Dona Lucilia, em vida, foi a pessoa em cuja conduta o inesperado não era habitual. Quer dizer, todo o seu comportamento era lógico, dentro de uma certa linha coerente, e nunca fazendo algo que não se pudesse prever.
Predileção pelos fracos e pequenos
Se algum inesperado ocorria, rumava no sentido do que se poderia presumir de uma longa trajetória anterior: um requinte de afeto e de delicadeza inimaginável, e inventado por ela no momento.
Eu não diria o mesmo de sua conduta depois de morta. Toda a ação que se pode atribuir a ela, atendendo aos pedidos feitos, e tudo quanto tem sido realizado a propósito dela era-me inesperado. Um inesperado dulcíssimo, mas era inesperado. Mas há dentro disso uma nota especial, que passarei a expor.
Parece-me que aquilo que, reta e ordenadamente, as pessoas possam desejar dela, plausivelmente ela concederá, ainda quando as almas um pouco “enjolráticas”1 dos que estão neste auditório queiram coisas inesperadas; nisso existe, por certo, um requinte de delicadeza. De tal maneira que já me tem acontecido de tomar como provável algumas coisas que desejam, e dar certo.
Isso se prende ao seguinte: durante sua vida, ela manifestou sempre uma predileção muito especial por aqueles que eram fracos, pequenos, e uma solicitude em atendê-los.

Mesmo em relação ao “filhão”2 que ela teve, Dona Lucilia procurava ver no que esse “filhão” estava precisando de algo, querendo alguma coisa, e se dedicava a encontrar, atender, favorecer, enfim a fazer o que ela pudesse em todas as idades dele. Todos entendem bem como isso está na linha do que ela faz com os presentes nesta reunião.
É compreensível, portanto, que ela tenha para uma geração tão posterior à minha uma solicitude especial; algo como eu a vi ter com a neta e depois com o bisneto dela.
“A afabilidade não é apressada e a pressa não é afável”
O assunto que me pediram tratar se contém, assim, um tanto sinteticamente nesta exposição. Ao contrário de Dona Lucilia, eu sou esquemático quando falo, embora não seja conciso no que escrevo, no sentido de que julgo necessário escrever coisas longas por causa da confusão que há nos espíritos. Mas sou conciso no seguinte: para dizer aquilo que afirmo, outros usariam muito mais papel do que utilizo. E ela não era concisa, falava longamente, com circunstâncias, com uma afabilidade sem pressa. Aliás, a afabilidade não é apressada e a pressa não é afável.
Mamãe contava, entrava em pormenores, passeava com o interlocutor pelos assuntos de que ela tratava, e nesse ponto as circunstâncias — não meu temperamento nativo — me obrigaram a ser diferente dela. E hoje em dia, quando exponho alguma coisa em qualquer ambiente, por mais filial e amigo que seja esse ambiente, já falo me defendendo contra as más interpretações. E também, por causa disso, procurando dar uma concisão didática ao que estou dizendo, para me defender de uma eventual acusação de ser muito prolixo.
Esse desejo de ajudar e esse modo de ser dela eu notei muito no seguinte: em relação a todo mundo Dona Lucilia era afável, mas quanto às pessoas que ela percebia estarem num estado de debilidade, qualquer que fosse esse estado, mamãe tinha um grau de afabilidade estudado, não no sentido acadêmico, científico, mas calculado pelo afeto. No que consistia isso?
Ela via uma pessoa com alguma lacuna, algum defeito, e analisava de que natureza era o efeito que isso podia produzir na pessoa. Na pessoa em tese e depois in concreto naquela pessoa.
Então, no modo de tratar, ela animava a pessoa e dava a entender que, por afeto, por bondade, ela se punha inteiramente naquela plana e tinha até certa predileção por aquela pessoa por causa daquela debilidade. De maneira que a pessoa ficava muito à vontade, como não costuma ficar um inferior em relação a outro que é superior. Com ela era o contrário. E, de outro lado, ela fazia isso, nem um pouco com ar de quem insinua estar fazendo uma esmola ou uma bondade, mas como quem está atendendo a um apelo de sua própria sensibilidade.
Por exemplo, tratar com crianças, com idosos e sofredores na vida. Há velhos que se tornam mais ou menos como certos serviços de mesa; às vezes se quebram tantas peças ao longo dos anos numa casa, que resta um prato ou dois. Alguns anciãos ficam assim na vida: o último prato de um serviço de mesa que já quebrou. O que fazer daquele prato? É um problema. E também pessoas com deficiência física; havia um primo cego e Dona Lucilia tinha um sobrinho surdo.
Mamãe nasceu em Pirassununga, e a família dela morou muito tempo nessa cidade. E deixou parentes, conhecidos etc., mas gente que inserida no ambiente de uma cidade do interior, como se apresentava naquela época, naturalmente acaipirou-se. E, às vezes, um ou outro desses aparecia em nossa residência, em São Paulo, para fazer uma visita; entrava na casa e percebia que todo o ar era diferente.

Como ela os tratava? Era sempre com uma bondade proporcionada, adequada, estudada, adaptada, que se tornava uma respiração, um oásis, um alívio para essas pessoas.
Continua no próximo post

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