Continuação do post anterior
Mas, pelo seu feitio
preponderantemente bondoso, a compaixão ressaltava nas suas atitudes. E
diversos fatos que mamãe nos contava, com inteira naturalidade, tornavam
patente a sua solicitude para com o próximo, muitas vezes sendo obrigada a
fazer sacrifícios não pequenos para dar ao outro um pouco de lenitivo na
carência que padecia.
Não se pode deixar de
ver a lógica que a orientava. Uma vez que ela tem tanta compaixão, está na
conseqüência que ela se sacrifique. Daí decorre, inclusive, o sentido da
palavra “compaixão”: cum passio. Passio em latim quer dizer sofrimento: por
exemplo, a Paixão de Nosso Senhor. Cum passio significa, pois, compaixão.
Compassivo é aquele que se mostra sensível ao sofrimento do próximo.
Esse sentimento,
volto a dizer, sobretudo no tempo de mamãe, era adquirido desde a mais tenra
infância, e toda a vida de família se desenvolvia como que ungido por ele. Ou
seja, era uma disposição de alma que se estendia facilmente aos parentes mais
distantes: primos, sobrinhos, cunhados, até os parentes afins ou
contraparentes. Isso determinava uma grande e desinteressada união da família.
Exemplo da bondade dos antigos tempos
Algo dessa bondade
dos antigos tempos ainda me foi dado conhecer, vendo-a praticada a meu favor.
Lembro-me de um fato característico nesse sentido.
Quando eu era ainda
menino, meus tios, irmãos e irmãs de mamãe, interessavam-se pela educação dos
filhos dela, assim como ela pela dos sobrinhos. Um cuidado oriundo da ideia de
que todos eram parentes estreitamente unidos, e deviam uns aos outros essa
preocupação afetiva, carinhosa, pelo futuro dos membros mais novos da família.
E naquela época, por
volta de 1920, no fim do ano todos os alunos de colégios particulares tinham de
prestar exame num estabelecimento do governo, para efeitos de controle de
qualidade de ensino. Eu, juntamente com um primo, fui fazer prova de
aritmética, para a qual estudara com razoável empenho. Mas, talvez por muita
ansiedade de minha parte, nervosismo de estudante, não me saí bem. Os cálculos
não batiam, e desisti de prolongar aquela aflição. Fui o primeiro a entregar o
exame aos professores, e me retirei da sala. Dirigi-me ao Jardim da Luz,
próximo ao local, e ali fiquei passeando, à espera de meu primo.
Quando este veio me
encontrar, perguntei-lhe:
— Então, qual foi a
reação dos professores ao corrigirem a minha prova?
— Olha, parece-me que
sua situação não é das melhores.
Na minha vã ilusão,
posto que eu sabia ter errado quase tudo, ainda tinha esperanças de um
resultado favorável. Insisti, e ele me disse:
— Pela fisionomia dos
examinadores ao correrem os olhos pela sua prova, não creio que você deva
esperar um bom resultado.
De fato, quando fui
ver a nota que havia recebido, estava bem abaixo da média. Ou seja, tinha sido
reprovado.
Agora entra o aspecto
compaixão daquele tempo. Meu primo e eu voltamos para nossas respectivas casas,
a dele era mais perto e, portanto, chegou antes de mim. Quando se encontrou com
seu pai, irmão de mamãe, terá comentado o meu fracasso no exame.
Ora, precisamente
naqueles dias mamãe se achava muito mal de saúde. Então meu tio, preocupado com
a repercussão que a notícia de minha nota poderia provocar no já debilitado
estado físico dela, dirigiu-se imediatamente ao ginásio e pediu que fosse
atendido pelos professores. Estes o receberam com muita gentileza, e ele se
explicou:
— Vim para verificar
o exame de um sobrinho. Sei que não está bom, mas afinal de contas eu gostaria
de lhes dizer que a mãe dele é minha irmã, e está num estado de saúde muito
delicado. Se ela souber que seu filho teve uma nota ruim, pode piorar ainda
mais, e eu quero evitar que isso aconteça.
Eles foram muito
atenciosos, procuraram minha prova no meio das outras, e a mostraram para meu
tio:
— Compreendemos a
situação, mas lamentamos: veja o senhor mesmo, e se pergunte se poderia dar outra
nota senão a que demos.
Meu tio leu e viu que
realmente não cabia outra avaliação. A nota dos professores tinha sido justa.
Agradeceu a atenção que lhe dispensaram, e saiu de lá em direção à minha casa,
onde ele mesmo deu a notícia a Dona Lucilia.
Continua...
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