domingo, 16 de novembro de 2014

Bondosa e compassiva para com as pessoas carentes

Continuação do post anterior
Mas, pelo seu feitio preponderantemente bondoso, a compaixão ressaltava nas suas atitudes. E diversos fatos que mamãe nos contava, com inteira naturalidade, tornavam patente a sua solicitude para com o próximo, muitas vezes sendo obrigada a fazer sacrifícios não pequenos para dar ao outro um pouco de lenitivo na carência que padecia.
Não se pode deixar de ver a lógica que a orientava. Uma vez que ela tem tanta compaixão, está na conseqüência que ela se sacrifique. Daí decorre, inclusive, o sentido da palavra “compaixão”: cum passio. Passio em latim quer dizer sofrimento: por exemplo, a Paixão de Nosso Senhor. Cum passio significa, pois, compaixão. Compassivo é aquele que se mostra sensível ao sofrimento do próximo.
Esse sentimento, volto a dizer, sobretudo no tempo de mamãe, era adquirido desde a mais tenra infância, e toda a vida de família se desenvolvia como que ungido por ele. Ou seja, era uma disposição de alma que se estendia facilmente aos parentes mais distantes: primos, sobrinhos, cunhados, até os parentes afins ou contraparentes. Isso determinava uma grande e desinteressada união da família.
Exemplo da bondade dos antigos tempos
Algo dessa bondade dos antigos tempos ainda me foi dado conhecer, vendo-a praticada a meu favor. Lembro-me de um fato característico nesse sentido.
Quando eu era ainda menino, meus tios, irmãos e irmãs de mamãe, interessavam-se pela educação dos filhos dela, assim como ela pela dos sobrinhos. Um cuidado oriundo da ideia de que todos eram parentes estreitamente unidos, e deviam uns aos outros essa preocupação afetiva, carinhosa, pelo futuro dos membros mais novos da família.
E naquela época, por volta de 1920, no fim do ano todos os alunos de colégios particulares tinham de prestar exame num estabelecimento do governo, para efeitos de controle de qualidade de ensino. Eu, juntamente com um primo, fui fazer prova de aritmética, para a qual estudara com razoável empenho. Mas, talvez por muita ansiedade de minha parte, nervosismo de estudante, não me saí bem. Os cálculos não batiam, e desisti de prolongar aquela aflição. Fui o primeiro a entregar o exame aos professores, e me retirei da sala. Dirigi-me ao Jardim da Luz, próximo ao local, e ali fiquei passeando, à espera de meu primo.
Quando este veio me encontrar, perguntei-lhe:
— Então, qual foi a reação dos professores ao corrigirem a minha prova?
— Olha, parece-me que sua situação não é das melhores.
Na minha vã ilusão, posto que eu sabia ter errado quase tudo, ainda tinha esperanças de um resultado favorável. Insisti, e ele me disse:
— Pela fisionomia dos examinadores ao correrem os olhos pela sua prova, não creio que você deva esperar um bom resultado.
De fato, quando fui ver a nota que havia recebido, estava bem abaixo da média. Ou seja, tinha sido reprovado.
Agora entra o aspecto compaixão daquele tempo. Meu primo e eu voltamos para nossas respectivas casas, a dele era mais perto e, portanto, chegou antes de mim. Quando se encontrou com seu pai, irmão de mamãe, terá comentado o meu fracasso no exame.
Ora, precisamente naqueles dias mamãe se achava muito mal de saúde. Então meu tio, preocupado com a repercussão que a notícia de minha nota poderia provocar no já debilitado estado físico dela, dirigiu-se imediatamente ao ginásio e pediu que fosse atendido pelos professores. Estes o receberam com muita gentileza, e ele se explicou:
— Vim para verificar o exame de um sobrinho. Sei que não está bom, mas afinal de contas eu gostaria de lhes dizer que a mãe dele é minha irmã, e está num estado de saúde muito delicado. Se ela souber que seu filho teve uma nota ruim, pode piorar ainda mais, e eu quero evitar que isso aconteça.
Eles foram muito atenciosos, procuraram minha prova no meio das outras, e a mostraram para meu tio:
— Compreendemos a situação, mas lamentamos: veja o senhor mesmo, e se pergunte se poderia dar outra nota senão a que demos.

Meu tio leu e viu que realmente não cabia outra avaliação. A nota dos professores tinha sido justa. Agradeceu a atenção que lhe dispensaram, e saiu de lá em direção à minha casa, onde ele mesmo deu a notícia a Dona Lucilia. 
Continua...

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