segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Bondade, justiça e compaixão

Ao recordar as manifestações de bondade que conheceu no seu tempo de moço, Dr. Plinio evoca um dos muitos episódios transcorridos em seu ambiente doméstico, nos quais sobressaía, aos seus olhos de filho, a figura de Dona Lucilia, caracterizada por um particular equilíbrio entre carinho, compaixão e justiça.
Mais de uma vez, atendendo à curiosidade dos que me seguem, tenho lhes falado da bondade de mamãe. Creio, porém, não ter ainda salientado um aspecto desse predicado que tanto a distinguia, que era o elemento compaixão.
Segundo o modo de entender do brasileiro, a bondade é uma disposição de alma emotiva. Essa emocionalidade provém de um sentimento de afeto e de enternecimento diante, sobretudo, de um ser humano, mas também em relação a outras criaturas, que sofram de qualquer carência e, por isso mesmo, se acham num estado de necessidade.
Portanto, nessa concepção, a bondade seria a virtude pela qual, vendo-se o próximo padecer alguma privação, participa-se dessa dor e procura-se remediá-la. Antes de tudo, para socorrer o outro, mas também para aliviar a si próprio da tristeza que lhe causa o sofrimento alheio.
Assim, na apreciação brasileira da bondade, a primazia é esse sentimento de compaixão, do qual aquela decorre. Ora, a bondade de mamãe muito se manifestava, e talvez principalmente, nessa acepção da palavra.
Equilíbrio entre compaixão e justiça
Convém frisar, entretanto, que essa compaixão não sobrepujava o senso de justiça, quando esta tinha de ser aplicada.
Para nos atermos ao modo brasileiro de interpretar os conceitos — mais ainda no tempo de mamãe do que hoje — a justiça deriva eminentemente de um silogismo imperativo, a cujos ditames é preciso obedecer. Então, raciocinando-se com base nesses e naqueles argumentos, tal pessoa foi objeto de uma injustiça. Ainda que se tenha pena (atitude aliás muito característica do nosso povo) de quem praticou a injustiça, deve-se exigir que ele repare o mal cometido. Não raro, tendo de fazer violência sobre si mesmo.
Imaginemos, por exemplo, uma criança de dez ou doze anos que tenha ofendido alguém com uma calúnia grave. A mãe a chama e lhe pergunta:
— É verdade que você falou isso de fulano?
— Sim, falei.
— Pois saiba que essa sua mentira se chama calúnia, e é altamente injuriosa contra fulano.
A criança se põe a chorar. A mãe, agindo de modo acertado, mostra-se irredutível:
— Não tem choro. Agora você vai comparecer diante das pessoas junto às quais você caluniou fulano e pedir, a elas e a ele, publicamente desculpas pela sua mentira.
A criança redobra o choro, mas obedece. O caluniado é, digamos, um homem muito mais velho que ela, e não pode ser atingido por uma mentirazinha pueril. Mas, a justiça deve ser reparada e, portanto, a criança é obrigada a se retratar. Tal lhe é exigido, antes de tudo, pela justiça; e em segundo lugar, para obrigá-la a sentir a dor da reparação e se convencer de que não deve repetir esse mau procedimento.

Compreende-se que, nesse caso, a mãe e a pessoa ofendida tenham pena da criança, porque ela é débil, sofre com a repreensão, mas a justiça tem o direito de ser restabelecida e não pode ser preterida pela compaixão. O equilíbrio entre as duas virtudes tem de ser mantido. E essa harmonia eu notava muito na maneira de agir de mamãe, quando se via posta em circunstâncias análogas.
Continua no próximo post

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