segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Amor à perfeição II

Continuação do post anterior
Certezas calmas, inflexibilidade suave
Mas, nas grandes linhas gerais da vida, nas convicções, nos princípios, ela não tinha um pingo de dúvida. Era feita de certezas: certezas calmas, lúcidas, de quem via logo à primeira vista e com muita nitidez o que era verdade e o que era o erro; o que era o bem e o que era mal; o que era o feio e o que era bonito. E aderia inteiramente, do fundo de sua alma, ao verum, bonum, pulchrum, com honestidade, limpidez e sinceridade tais que ela se fazia uma só com a verdade, com o bem e a beleza, não querendo senão a eles. Com o mesmo espírito do pão-pão, queijo-queijo: a aceitação era aceitação, a rejeição era rejeição; a convicção era convicção, a negação era negação. Sem tergiversações.
Não se pense, porém, que essa atitude resoluta era tomada por ela com dureza. Dava-se, antes, numa espécie de inflexibilidade inabalável, mas suave. De maneira que, ao externar uma afirmação, fazia-o com muita gentileza. Se a apertassem, ela reafirmava demonstradamente e, se fosse preciso, terminava afirmando quase proclamadamente. Eram intensidades sucessivas de reação, nas quais a última podia chegar a ser bem categórica. A tal ponto que meu pai, algumas vezes surpreso com a postura categórica de mamãe, cochichava-me (aludindo à remota ascendência dela): “Ih! Essa senhora espanhola...”
Tendência a ver o mais alto aspecto das coisas
Agora, deve-se acrescentar a essas disposições de alma uma tendência de espírito a sempre ver as coisas pelo seu mais alto aspecto e através do prisma do maravilhoso. Nesse sentido, especialmente, Dona Lucilia tinha o espírito muito elevado. Quando se conversava com ela sobre determinado tema, mamãe tendia logo a situar suas reflexões no mais alto que o feitio intelectual dela, de senhora não universitária, compreendia.
Eu achava, aliás, um encanto especial no fato de ela não ser universitária. Sentir-me-ia mal à vontade tendo uma mãe carregando uma série de diplomas debaixo do braço e que me respondesse com uma citação de determinado autor que ela leu. Dona Lucilia não citava. Ela dizia o que tinha na sua alma, o que ela havia visto. Era uma senhora e mãe de família, e lhe bastava inteiramente ser isso e mais nada. Embora houvesse lido, sobretudo em moça, o seu tanto em inglês, um pouco mais em francês, ela jamais começaria um pensamento ou uma resposta assim: “Como disse Shakespeare”... Não. Como disse a alma, o coração dela, o seu modo de ser e de comunicar suas idéias, posta na suavidade da vida de família da São Paulinho de então.
Cumpre salientar que tal disposição não era calculada, mas normal, instintiva; era o impulso — eu diria, um pouco sentimentalmente — do coração que a conduzia a isso. E note-se: ao lado de um espírito tão elevado, um espírito capaz de descer aos últimos pormenores e se entreter com a forma da pétala de uma flor, com o ruído de um homem que está vendendo tecidos na rua, com uma doméstica que teve um dito jocoso, assim como em contar recordações dela em Paris, na Alemanha, no Rio de Janeiro, lembrando episódios da sociedade no seu tempo de solteira.
Essa feliz harmonia entre o amor ao elevado e o apreço pelo comum revelava a bela variedade da alma de Dona Lucilia, a sua adaptabilidade a todas as circunstâncias, e como procurava ela considerar o aspecto simbólico, o aspecto moral e um certo fundo religioso presentes nas coisas que a cercavam.

Plinio Correa de Oliveira – Extraído de conferência em 12/8/1988

Nenhum comentário:

Postar um comentário