domingo, 1 de setembro de 2013

Em meio às tormentas

A Segunda Guerra Mundial: fim de uma era
Ao longo dos anos que transcorreram entre as duas conflagrações mundiais, Dona Lucilia pôde observar, com tristeza, como a nova mentalidade liberal e igualitária, difundida por todo o mundo civilizado, não fazia senão se acentuar, arrastando a humanidade, em alegre farândola, para o abismo de tragédias das quais a Segunda Guerra Mundial seria apenas o prelúdio.
Enquanto, por um lado, o progresso material crescia de modo inebriante e oferecia aos homens a perspectiva ilusória de uma felicidade sem limites, à margem da Lei de Deus, por outro, o abandono dos sagrados preceitos dessa mesma Lei ia abrindo caminho para hecatombes de consequências incalculáveis, O que, aliás, Dr. Plinio — em inteira consonância com a mentalidade de sua mãe — previra em 1929, dez anos antes de eclodir a guerra. Naquela ocasião escrevia ele em carta a um amigo:
Meu caro [Fulano]
Cada vez mais se acentua em mim a impressão de que estamos no vestibulo de uma epocha cheia de sofrimmentos e lutas. For toda a parte o sofrimmento da Egreja se torna mais intenso, e a luta se aproxima mais. Tenho a impressão de que as nuvens do horizonte politico estão baixando. Não tarda a tempestade, que deverá ter uma guerra mundial como simples prefacio. Mas esta guerra espalhará pelo mundo inteiro uma tal confusão, que revoluções surgirão em todos os cantos, e a putrefação do triste “seculo XX” atingirá seu auge. Aí, então, surgirão as forças do mal que como os vermes, somente apparecem nos momentos em que a putrefacção culmina. Todo o “bas-fond”1 da sociedade subirá á tona, e a Igreja será perseguida por toda a parte. Mas... “Et ego dico tibi quia tu es Petrus,et super hanc petram aedificabo Ecclesiam meam, ET PORTAE INFERI NON PRAEVALEBUNTADVERSUS EAM”.2 Como consequência, ou teremos “un nouveau Moyen Age”3 ou teremos o fim do mundo.
Eis a nossa principal tarefa: prepararmo-nos para a luta, e prepara a Egreja, como o marinheiro que prepara o navio antes da tempestade.
De fato, após dez precisos anos, arrebenta a Segunda Guerra Mundial que levará, nos anos subsequentes, a um empenho das classes dirigentes, por todo o mundo, em impedir qualquer conflito de ideologias, receosas da eclosão de uma nova guerra, que seria certamente muito pior que a anterior. Esse estado de espírito abria as portas para a aceitação de todas as renúncias em questões doutrinárias, desde que com isso se evitem polêmicas e confrontos.
Tal renúncia à procura da verdade e à lógica, esteio da razão, a humanidade a fará, a fim de correr atrás da fugidia posição do meio-termo. O lumen rationis4 se apagará progressivamente, dando origem: à “civilização do instinto”, explicitada por completo, em seus princípios e formas de vida, pela Revolução da Sorbonne.5
Desnecessário será dizer o quanto Dona Lucilia se opunha a esse modo de ser, o qual, como um gás entorpecente, propagava-se por toda parte e contaminava as mentes, obnubilando-lhes a razão. Nessa íntegra dama, um perfeito equilíbrio hierárquico reinava entre as potências da alma. A inteligência, iluminada por ardente fé, governava por inteiro a vontade, e esta, a sensibilidade. Daí a firmeza de princípios que a levava a uma perfeita intransigência em relação ao mal, mantendo sempre serenidade de temperamento e benevolência em relação àqueles que conservavam algo de bom. E o que mais do que tudo podemos admirar em Dona Lucilia nessa quadra histórica.
A derrota da França e a tomada de Paris
O desenrolar dos acontecimentos e convulsões que abalavam o mundo naquela conturbada época era acompanhado passo a passo por Dona Lucilia, pois eia bem percebia a importância deles para o futuro da Igreja e da Civilização Cristã. Assim, durante a guerra, após o covarde esmagamento da Polônia pelos nazistas mancomunados com os comunistas, ante as indecisões das grandes potências européias, voltaram os exércitos germânicos seus canhões destruidores contra a França. Num ataque fulminante, a avassaladora onda de fogo e de aço dos nazistas fez recuar as tropas francesas em desordem, obrigando o governo a abandonar Paris. Estava a capital ameaçada de feroz e implacável bombardeio, que destruiria um grande número de relíquias da Cristandade, se é que não apagaria do mapa aquela jóia da civilização. Qual seria a sorte da Cidade Luz?
Bem sabemos quanto a França significava para Dona Lucilia. E, dentro da França, Paris, que ela havia conhecido em plena Belle Epoque, no luzimento de seu esplendor. Uma eventual destruição da cidade implicaria não só a liquidação de edifícios grandiosos por suas linhas arquitetônicas e por sua história, como também na perda das incomparáveis obras de arte neles contidas. Seria a extinção, no mundo, do farol do bom gosto e do charme. Dona Lucilia, que tudo considerava pelo seu aspecto mais elevado, pelo lado sobrenatural, estava certa de terem os valores da França, em última análise, sua origem no alto do Calvário onde o Divino Redentor sofreu e morreu por nós.
A ruína de tal maravilha constituía para ela um sacrilégio. Por isso, passou a ouvir pelo rádio as notícias da guerra, a fim de acompanhar de perto como se jogaria o destino de Paris.
Após um período de incertezas, a cidade foi afinal poupada, causando-lhe isto grande alegria. Porém, deixou-a entristecida o fato de ter a França caído sob a dominação nazista. A certa altura do desenrolar desses acontecimentos, Dona Lucilia foi passar alguns dias em Águas da Prata. Uma ironia de Dr. Plinio numa carta faz-nos ver como ela mantinha uma posição definida e categórica contra o nazismo:
São Paulo, 1 de junho de 40
Mãezinha de meu coração,
Finalmente, já está chegando a seu termo a longa temporada de “castigo ‘ em Prata, que a Sra. se impoz ou, antes, nós lhe impuzemos. Espero que na proxima Quinta-feira a Sra. já esteja de volta no ninho.
Meu pé está quasi bom, se bem que ainda não inteiramente restabelecido. Tenho uma certa desconfiança de que um musculo da parte de traz do joelho tambem sofreu uma torsão. Espero, entretanto, que quando eu a for abraçar na estação já esteja andando com passo lepido.
Tenho pensado na Sra., sempre que leio os desoladores successos alcançados por seu “amigo” Hitler.
A Katucha obteve cordão, e é a primeira em Francez.
Quanto ao mais, graças a Deus, tudo vae correndo satisfactoriamente.
Mande lembranças á D. Maria, e acceite, com mil e mil beijos affectuosissimos, todas as saudades do filho respeitoso, que lhe pede a benção.
Plinio
Noutra missiva, enquanto relata com luxo de pormenores seu dia-a-dia em Santos, para que Dona Lucilia o acompanhe em pensamento, Dr. Plinio uma vez mais alude de passagem à questão do nazismo.
Mãezinha do meu coração,
Dada a facilidade com que se telephona daqui para S. Paulo, tenho cedido á tentação de substituir as cartas por telephonemas. E esta, pois, a primeira carta que lhe escrevo.
A estadia tem sido excellente, O hotel, sendo embora fino como convem, tem o merito inapreciavel de,não ser granfino. A comida é boa, e o ar do mar abre muito meu apetite. A meia-noite, comemos sempre uma torta de maçã com chantilly.
Em materia de passeios, fui ao forte de Itaipus, á biquinha de S. Vicente, á ponte pensil, á ponta da praia, ao morro de Sta. Therezinha, ao Monte Serrat, á Bertioga, a Guarujá em fim, é impossivel aproveitar melhor.
Notei que o repouso me fez muito bem. E a Sra. como vae, meu amor? Como vae nosso “figadorio “? Ainda entumecido pelo Hitler?
Não sei bem quando voltarei: talvez Segunda e talvez na Quarta. Estou com mais saudades suas do que a Sra. pode imaginar.
Com mil e mil beijos inuitissimo affectuosos, pede-lhe a benção o filho respeitoso, que immensamente a quer.
Plinio
Intransigência na defesa dos princípios
Tal como na Primeira Guerra Mundial, também agora a opinião pública brasileira estava dividida, porém, não só por motivo de preferências culturais. Havia um fator ideológico do qual, em consciência, não se podia abstrair: sendo o nazismo uma doutrina condenada pela Igreja, era vedado a um católico dar-lhe qualquer tipo de apoio.
Certo dia, uma pessoa dos círculos familiares de Dona Lucilia, ao visitá-la, declarou-se favorável ao nazismo, enaltecendo seus sangrentos triunfos, além de manifestar o desejo de sua vitória em todo o mundo.
E,como se isso não bastasse, introduziu um tema de índole diversa, ao afirmar ser o divórcio medida indispensável para a solução dos casos extremos em que os cônjuges não conseguem mais levar vida em comum.
Essas afirmações contundiam de frente a doutrina católica. E Dona Lucilia, sempre tão afável, passou a defender com energia os bons princípios, dando origem a uma acalorada discussão. Ergueu a voz a ponto de ser ouvida na sala ao lado — onde Dr. Plinio preparava uma aula a ser dada na Faculdade Sedes Sapientiæ — sem no entanto perder o aprumo e a dignidade. Era sempre o mesmo amor de Deus que, de um lado, a movia aos maiores extremos de bondade e, de outro, a levava a uma não menor rejeição ao mal.
 1) Expressão francesa para designar a camada mais corrompida da sociedade.
2) “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16,18).
3) Uma nova Idade Média.
4) Luz da razão.

5) Cfr. Plinio Corrêa de Oliveira, Revolução e Contra-Revolução, parte III.

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