A Segunda Guerra Mundial: fim de uma era
Ao longo dos anos que transcorreram entre as duas conflagrações
mundiais, Dona Lucilia pôde observar, com tristeza, como a nova mentalidade
liberal e igualitária, difundida por todo o mundo civilizado, não fazia senão
se acentuar, arrastando a humanidade, em alegre farândola, para o abismo de tragédias
das quais a Segunda Guerra Mundial seria apenas o prelúdio.
Enquanto, por um lado, o progresso material crescia de modo inebriante
e oferecia aos homens a perspectiva ilusória de uma felicidade sem limites, à
margem da Lei de Deus, por outro, o abandono dos sagrados preceitos dessa mesma
Lei ia abrindo caminho para hecatombes de consequências incalculáveis, O que,
aliás, Dr. Plinio — em inteira consonância com a mentalidade de sua mãe —
previra em 1929, dez anos antes de eclodir a guerra. Naquela ocasião escrevia
ele em carta a um amigo:
Meu caro [Fulano]
Cada vez mais se
acentua em mim a impressão de que estamos no vestibulo de uma epocha cheia de
sofrimmentos e lutas. For toda a parte o sofrimmento da Egreja se torna mais
intenso, e a luta se aproxima mais. Tenho a impressão de que as nuvens do horizonte
politico estão baixando. Não tarda a tempestade, que deverá ter uma guerra
mundial como simples prefacio. Mas esta guerra espalhará pelo mundo inteiro uma
tal confusão, que revoluções surgirão em todos os cantos, e a putrefação do
triste “seculo XX” atingirá seu auge. Aí, então, surgirão as forças do mal que como
os vermes, somente apparecem nos momentos em que a putrefacção culmina. Todo o
“bas-fond”1 da sociedade subirá á tona, e a Igreja será perseguida por toda a parte.
Mas... “Et ego dico tibi quia tu es Petrus,et super hanc petram aedificabo
Ecclesiam meam, ET PORTAE INFERI NON PRAEVALEBUNTADVERSUS EAM”.2 Como consequência,
ou teremos “un nouveau Moyen Age”3 ou teremos o fim do mundo.
Eis a nossa principal
tarefa: prepararmo-nos para a luta, e prepara a Egreja, como o marinheiro que
prepara o navio antes da tempestade.
De fato, após dez precisos anos, arrebenta a Segunda Guerra Mundial
que levará, nos anos subsequentes, a um empenho das classes dirigentes, por
todo o mundo, em impedir qualquer conflito de ideologias, receosas da eclosão
de uma nova guerra, que seria certamente muito pior que a anterior. Esse estado
de espírito abria as portas para a aceitação de todas as renúncias em questões
doutrinárias, desde que com isso se evitem polêmicas e confrontos.
Tal renúncia à procura da verdade e à lógica, esteio da
razão, a humanidade a fará, a fim de correr atrás da fugidia posição do meio-termo.
O lumen rationis4 se apagará
progressivamente, dando origem: à “civilização do instinto”, explicitada por
completo, em seus princípios e formas de vida, pela Revolução da Sorbonne.5
Desnecessário será dizer o quanto Dona Lucilia se opunha a esse
modo de ser, o qual, como um gás entorpecente, propagava-se por toda parte e
contaminava as mentes, obnubilando-lhes a razão. Nessa íntegra dama, um
perfeito equilíbrio hierárquico reinava entre as potências da alma. A
inteligência, iluminada por ardente fé, governava por inteiro a vontade, e
esta, a sensibilidade. Daí a firmeza de princípios que a levava a uma perfeita
intransigência em relação ao mal, mantendo sempre serenidade de temperamento e
benevolência em relação àqueles que conservavam algo de bom. E o que mais do
que tudo podemos admirar em Dona Lucilia nessa quadra histórica.
A derrota da
França e a tomada de Paris
O desenrolar dos acontecimentos e convulsões que abalavam o
mundo naquela conturbada época era acompanhado passo a passo por Dona Lucilia,
pois eia bem percebia a importância deles para o futuro da Igreja e da
Civilização Cristã. Assim, durante a guerra, após o covarde esmagamento da
Polônia pelos nazistas mancomunados com os comunistas, ante as indecisões das
grandes potências européias, voltaram os exércitos germânicos seus canhões
destruidores contra a França. Num ataque fulminante, a avassaladora onda de
fogo e de aço dos nazistas fez recuar as tropas francesas em desordem, obrigando
o governo a abandonar Paris. Estava a capital ameaçada de feroz e implacável
bombardeio, que destruiria um grande número de relíquias da Cristandade, se é
que não apagaria do mapa aquela jóia da civilização. Qual seria a sorte da
Cidade Luz?
Bem sabemos quanto a França significava para Dona Lucilia. E,
dentro da França, Paris, que ela havia conhecido em plena Belle Epoque, no luzimento de seu esplendor. Uma eventual
destruição da cidade implicaria não só a liquidação de edifícios grandiosos por
suas linhas arquitetônicas e por sua história, como também na perda das
incomparáveis obras de arte neles contidas. Seria a extinção, no mundo, do
farol do bom gosto e do charme. Dona Lucilia, que tudo considerava pelo seu
aspecto mais elevado, pelo lado sobrenatural, estava certa de terem os valores
da França, em última análise, sua origem no alto do Calvário onde o Divino Redentor
sofreu e morreu por nós.
A ruína de tal maravilha constituía para ela um sacrilégio.
Por isso, passou a ouvir pelo rádio as notícias da guerra, a fim de acompanhar
de perto como se jogaria o destino de Paris.
Após um período de incertezas, a cidade foi afinal poupada,
causando-lhe isto grande alegria. Porém, deixou-a entristecida o fato de ter a
França caído sob a dominação nazista. A certa altura do desenrolar desses
acontecimentos, Dona Lucilia foi passar alguns dias em Águas da Prata. Uma
ironia de Dr. Plinio numa carta faz-nos ver como ela mantinha uma posição
definida e categórica contra o nazismo:
São Paulo, 1 de junho
de 40
Mãezinha de meu
coração,
Finalmente, já está
chegando a seu termo a longa temporada de “castigo ‘ em Prata, que a Sra. se
impoz ou, antes, nós lhe impuzemos. Espero que na proxima Quinta-feira a Sra.
já esteja de volta no ninho.
Meu pé está quasi bom,
se bem que ainda não inteiramente restabelecido. Tenho uma certa desconfiança
de que um musculo da parte de traz do joelho tambem sofreu uma torsão. Espero,
entretanto, que quando eu a for abraçar na estação já esteja andando com passo
lepido.
Tenho pensado na Sra.,
sempre que leio os desoladores successos alcançados por seu “amigo” Hitler.
A Katucha obteve
cordão, e é a primeira em Francez.
Quanto ao mais, graças
a Deus, tudo vae correndo satisfactoriamente.
Mande lembranças á D.
Maria, e acceite, com mil e mil beijos affectuosissimos, todas as saudades do
filho respeitoso, que lhe pede a benção.
Plinio
Noutra missiva, enquanto relata com luxo de pormenores seu
dia-a-dia em Santos, para que Dona Lucilia o acompanhe em pensamento, Dr.
Plinio uma vez mais alude de passagem à questão do nazismo.
Mãezinha do meu
coração,
Dada a facilidade com
que se telephona daqui para S. Paulo, tenho cedido á tentação de substituir as
cartas por telephonemas. E esta, pois, a primeira carta que lhe escrevo.
A estadia tem sido
excellente, O hotel, sendo embora fino como convem, tem o merito inapreciavel
de,não ser granfino. A comida é boa, e o ar do mar abre muito meu apetite. A
meia-noite, comemos sempre uma torta de maçã com chantilly.
Em materia de passeios,
fui ao forte de Itaipus, á biquinha de S. Vicente, á ponte pensil, á ponta da
praia, ao morro de Sta. Therezinha, ao Monte Serrat, á Bertioga, a Guarujá em
fim, é impossivel aproveitar melhor.
Notei que o repouso me
fez muito bem. E a Sra. como vae, meu amor? Como vae nosso “figadorio “? Ainda
entumecido pelo Hitler?
Não sei bem quando
voltarei: talvez Segunda e talvez na Quarta. Estou com mais saudades suas do
que a Sra. pode imaginar.
Com mil e mil beijos
inuitissimo affectuosos, pede-lhe a benção o filho respeitoso, que immensamente
a quer.
Plinio
Intransigência
na defesa dos princípios
Tal como na Primeira Guerra Mundial, também agora a opinião
pública brasileira estava dividida, porém, não só por motivo de preferências
culturais. Havia um fator ideológico do qual, em consciência, não se podia
abstrair: sendo o nazismo uma doutrina condenada pela Igreja, era vedado a um
católico dar-lhe qualquer tipo de apoio.
Certo dia, uma pessoa dos círculos familiares de Dona
Lucilia, ao visitá-la, declarou-se favorável ao nazismo, enaltecendo seus
sangrentos triunfos, além de manifestar o desejo de sua vitória em todo o
mundo.
E,como se isso não bastasse, introduziu um tema de índole
diversa, ao afirmar ser o divórcio medida indispensável para a solução dos
casos extremos em que os cônjuges não conseguem mais levar vida em comum.
Essas afirmações contundiam de frente a doutrina católica. E
Dona Lucilia, sempre tão afável, passou a defender com energia os bons
princípios, dando origem a uma acalorada discussão. Ergueu a voz a ponto de ser
ouvida na sala ao lado — onde Dr. Plinio preparava uma aula a ser dada na
Faculdade Sedes Sapientiæ — sem no entanto perder o aprumo e a dignidade. Era
sempre o mesmo amor de Deus que, de um lado, a movia aos maiores extremos de
bondade e, de outro, a levava a uma não menor rejeição ao mal.
1) Expressão
francesa para designar a camada mais corrompida da sociedade.
2) “Tu és
Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão
contra ela” (Mt 16,18).
3) Uma nova
Idade Média.
4) Luz da
razão.
5) Cfr.
Plinio Corrêa de Oliveira, Revolução e Contra-Revolução, parte III.
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