quinta-feira, 24 de março de 2016

Transbordamento de bondade III (cont)

Continuação dos posts anteriores
Presentes dados a Dr. Plinio
Todo ano, por ocasião de meu aniversário, Natal, Ano Bom, mamãe me dava um presentinho, mas não muito caro, porque eu tinha pouco dinheiro para dar-lhe e ela vivia de uma rendazinha que eu lhe concedia. Mas ela comprava o melhor que podia. Dona Lucilia era desse gênero de pessoas que achava que as coisas tendem ao eterno, e não se dava bem ideia de como os gostos mudam. Em vez de confiar a Rosée a compra de uma gravata, ela confiava a papai, porque na família ele era tido, em moço, como se vestindo muito bem. Então permaneceu aquela ideia: João Paulo veste-se bem.
Naturalmente, os tempos passaram, as modas mudaram, mas papai comprava gravatas ao gosto do tempo dele, sem o esmero que caracterizava mamãe. Mas ela julgava que estava muito bem comprada, porque “João Paulo veste-se bem”. Há muita gente que envelhece assim, com esses paradigmas fixos.
Naquele tempo, qualquer gravata — mesmo que não fosse de muito boa qualidade — vinha coberta por uma folha de seda, dentro de uma caixa.
Não sei por que, mas em vez de escrever num cartãozinho, ela o fazia nesse papel de seda. Era o hábito. Eu respeitava seu modo de fazer, porque neste entravam os pormenores mais miúdos de uma personalidade que, para mim, no caso dela, tinha um sabor, de maneira que eu deixava fazer e fingia que achava tudo inteiramente normal.
E uns anos antes de ela começar a perder a lucidez — ficou com a lucidez meio trincada, bem prejudicada nos dois últimos anos da vida —, ela teve catarata e via mal. E depois não dominava bem os braços; para uma pessoa velha, ela os dominava normalmente. Certo dia eu passei à tufão pelo corredor de meu apartamento e a vi sentadinha junto à minha escrivaninha — ela julgava que eu me encontrava fora de casa e estava, então, me preparando a surpresa de aniversário, porque em cada vez uma gravata, um abajur ou outro objeto assim era uma surpresa.
E ela estava sentadinha ali, vendo mal, escrevendo ainda com aquelas penas de aço que se molham no tinteiro e depois se escreve. Caneta tinteiro ela nunca usou. E escrevendo umas palavras que eram, em geral: “Ao filhão querido, muitos beijos e abraços”, ou algo semelhante, sem nenhuma pretensão, mas com um cuidado, um esforço, uma coisa enorme! Ela toda estava empenhada em que aquilo saísse bem feito. Eu fingi que não notei — creio que ela nem me viu passar — e fui embora. Depois guardei a caixa.

Era esse o esmero com que ela fazia qualquer coisa pequena, e até pobre. Com um cuidado que era esse carinho envolvente como uma campânula, que abrange por inteiro e constituía a nota característica do afeto materno dela.
Continua

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