segunda-feira, 14 de março de 2016

Transbordamento de bondade (cont)

Desejo de conviver com seu filho, mesmo que fosse por um instante
Exceto em ocasiões como aniversários etc., os agrados dela eram como em todas as outras famílias. De manhã eu beijava a mão, depois o rosto de mamãe; e à noite, antes de dormir, também. Só isso.
Quando éramos crianças, minha prima, minha irmã e eu tínhamos a Fräulein1 e estudávamos em um recinto, no andar superior da casa, que servia como sala de estudos e de brinquedo. Tendo eu ficado mais velho e a Fräulein sido despedida, pus uma mesa de estudos no escritório de papai; e mamãe, de vez em quando, entrava.
E o entrar — até o primeiro ou segundo ano da faculdade isso não desapareceu, embora tenha se atenuado — era meio para ver se eu não estava perdendo meu tempo fazendo qualquer bobagem, que a criança faz para não estudar, ou se estava estudando mesmo.
Ela não propriamente disfarçava, mas tinha tanta vontade de agradar e ficava tão contente de ter esta oportunidade natural, que entrava transbordando de carinho. Eu fechava a porta do escritório de papai — que em geral ficava trabalhando na cidade — não a chave, mas só com o trinco. Mamãe abria o trinco de um modo inteiramente diferente do meu. Ela o fazia devagarzinho, entrava e me dizia alguma coisa da miúda vida cotidiana, por exemplo: “Filhão, você já tomou seu lanche?” Ou então:
“Filhão, como caiu a temperatura!” Era tão carinhosa e de tal maneira se percebia que ela queria me ouvir falar, conviver comigo naquele instantinho, que era uma coisa extraordinária!
Mamãe era muito ciosa do meu tempo, mas com uma restrição: se eu fazia algum aceno para ela sentar-se e conversarmos um pouco, não recusava. Falávamos então sobre o tempo, exames, coisas muito respeitáveis, etc., mas ela não se impunha nunca. Isso até o fim de sua vida.
Eu não me lembro de uma só vez em que ela se sentasse junto à minha mesa de estudos só para conversar, prosear. Seria uma coisa tão natural numa mãe... Às vezes mamãe entrava e apanhava uma cadeira porque tinha alguma coisa particular para falar, contava um fato de família, tratava de algo que era necessário resolver. Mas, fora desses casos, nunca!
E sua prosinha era leve, ela ficava tão entretida, contente e agradecida que transbordava. Porém, bastava notar um pouquinho que eu estava com pressa no estudo para ela imediatamente se levantar, fingindo que não percebeu. E às vezes até ela dizia: “Filhão, sua avó está esperando em tal sala, preciso atendê-la, etc.”, ou alguma coisa assim, mas para não me deixar mal à vontade.
Vê-se, portanto, numa bagatela como essa, o requinte do esmero. Não é propriamente da polidez. Quem reduzisse isso à polidez, baixaria o alcance do que estou dizendo. É o requinte da vontade de agradar, produzindo uma sensação agradável a todo propósito.

Continua no próximo post

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