terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Pelo Reno, até Colônia

Já recuperada, Dª Lucilia encerrou a temporada em Wiesbaden e, junto com a família, partiu numa excelente embarcação pelo lendário e formoso Reno, rumo a Colônia. Sem os males de que fora vítima por ocasião da travessia oceânica, pôde apreciar, em toda a sua beleza, a paisagem renana. Durante o percurso, ora ao ar livre, ora no interior do barco, ia comentando com os filhos tudo quanto de interessante via nas margens: castelos de contos de fada, imponentes e inexpugnáveis fortalezas, veneráveis mosteiros, graciosas capelinhas, lugarejos com ares pitorescamente medievais. De vez em quando, acima de um afluente do grande rio divisava, ainda firme e forte, alguma ponte de pedra traçada sobre arcos, que datava do Império Romano... Pelas campinas, entrecortadas de vinhedos e outras plantações cultivadas com esmero, um gado gordo e bem-tratado.
Castelo de Katz, às margens do Reno
Transcorrido algum tempo de viagem, a família resolveu fazer uma pausa e hospedar-se num encantador hotel, situado no alto de uma colina, perto do rio. Todos comentavam — já com saudades, pois se aproximava o fim de sua estadia na Alemanha — os deliciosos pratos da cozinha do país, e, mais do que tudo, o mundialmente famoso vinho branco do Reno. Manifestavam seu anseio de ali mesmo saborear a requintada bebida, da qual teciam os maiores elogios. Isso não fez senão aguçar a curiosidade dos meninos que já se imaginavam partícipes da apetecível degustação. Após terem todos se instalado nos respectivos quartos, e chegada a hora do jantar, desceram ao restaurante. Plinio, logo ao entrar, começou a analisar a mesa preparada para sua família. Estranhou o fato de num dos lugares haver somente taça para água e perguntou a um parente qual o motivo dessa diferença. A resposta não se fez esperar e o deixou perplexo:
— Este é o seu lugar e criança não toma vinho!
Durante a refeição, Plinio manifestou seu desejo de experimentar a extraordinária bebida. Mas as regras eram implacáveis... Calou-se, sem se conformar com a “injusta” medida.
Terminado o jantar as pessoas se levantaram e, mantendo animada conversa, passaram a uma sala contígua. Plinio se deixou ficar um pouco para trás, junto às mesas. Era a oportunidade de provar o generoso fruto da videira. Sem perda de tempo bebeu um copo do vinho restante. O efeito foi quase imediato. Vendo a família em entretida prosa, arrastou uma cadeira até a roda e exprimiu seu desejo de fazer um discurso... Com loquacidade e alegria inusitadas, pôs-se a tecer observações psicológicas — consideradas não oportunas — sobre os parentes. Dª Lucilia não demorou a intuir o ocorrido. Dirigindo-se a Plinio, perguntou-lhe:
— Meu filho, você bebeu o vinho que havia sobrado?
Ele respondeu com toda a inocência:
— Bebi, sim, senhora.
Dª Lucilia ficou um tanto preocupada, receando o efeito do álcool, em quantidade excessiva, sobre uma criança tão pequena, e insistiu:
— Mas, meu filho, você bebeu tudo?
— Sim, bebi. E estava muito gostoso — concluiu ele candidamente.
Vista panorâmica da cidade de Colônia
Dª Lucilia então, com afeto e seriedade, explicou-lhe o que havia de censurável no procedimento dele, além do perigo que aquilo poderia representar para a saúde. Em seguida, tomou-o por uma das mãos, Dr. João Paulo pela outra, e levaram-no para o quarto, onde um sono reparador restabeleceu a normalidade.
Os Ribeiro dos Santos prosseguiram viagem e, em dado momento, Colônia se anunciou de longe aos olhos de Dª Lucilia pelas altas e majestosas torres de sua célebre catedral, situada à margem do Reno. Um dos maiores centros católicos do país, a cidade podia ostentar uma história duas vezes milenar, posto haver sido fundada pelos romanos logo após terem conquistado a região. Todos esses aspectos de religiosidade e de tradição latina agradavam a Dª Lucilia. Ela também guardará lembrança de um pequeno fato acontecido com seu filho nessa cidade.
Logo ao entrarem na suíte que ocupariam no hotel, qual não é sua surpresa ao ver Plinio imediatamente procurar a toilette e abrir todas as torneiras. Com sua invariável amenidade, pergunta-lhe:
— Plinio, o que você está fazendo?
— Ah! mamãe, eu estava à procura da água-de-colônia, mas essas torneiras só têm água comum!...
Sem rir e menos ainda zombar da puerilidade de seu querido filho, ela tomou esta assertiva, proveniente da inocência dele, com toda a naturalidade, deixando transparecer que compreendia sua atitude. Explicou-lhe porém não ser em qualquer lugar que ele encontraria a famosa água-de-colônia...
A família demorou-se alguns dias visitando Colônia, de onde embarcou em um trem rumo a Paris. Assim, percorrendo as cativantes terras germânicas em diversos sentidos, vários foram os aspectos que Dª Lucilia e os seus tiveram a felicidade de conhecer, antes de a Primeira Guerra Mundial ensanguentar a Europa e destruir os Impérios Centrais. Quem não conheceu a Alemanha, como aliás qualquer outro país europeu, naquele tempo, não sabe verdadeiramente a que requintes chegara então a civilização ocidental.
No caso da Alemanha, uniam-se à grandeza, à distinção e ao brilho os tão decantados predicados germânicos do senso de organização, de disciplina, além da característica candura, valores muito bem-discernidos e apreciados, como também praticados por Dª Lucilia. Contudo, as qualidades com as quais mais sentia consonância eram as de um país vizinho, a França.
Paris
Vista de Paris, onde Dª Lucilia encerraria seu longo
 período de convalescença
Seria naquela Paris onde as luzes da história se faziam ainda sentir em cada esquina, que Dª Lucilia acabaria por recuperar inteiramente a saúde. Desde os primeiros passos fora da estação ferroviária, observa encantada aqueles prédios, e sua primeira análise incide sobre a harmonia das linhas, às vezes singelas, mas sempre distintas. 

Paris não era de todo estranha a Dª Lucilia. Desde sua mais jovem idade, como que convivera com ela, pela leitura assídua de autores franceses e, especialmente, do Journal de l’Université des Annales, como também pelo trato íntimo com parentes e amigos que com frequência iam a Paris passar temporadas. 

Assim, ao ver pela primeira vez muitos daqueles edifícios, era como se reencontrasse velhos conhecidos, vindo-lhe à memória a imagem ideal, por ela formada a respeito deles através das descrições ouvidas ou lidas. Com o passar do tempo, seu encanto pelas tradições históricas discerníveis na magnífica urbe não cessaria de crescer. O colorido dos virtrais de Notre-Dame, o cintilar da lua cheia sobre as alvas pedras dos monumentos, as águas do Sena a fluírem sob pontes de belíssima cantaria, dando a impressão de correrem carregadas de reminiscências, enfim, tudo a maravilhava.
Menor não era sua admiração pelo esplendor daquela requintada sociedade dos últimos anos da Belle Époque, que então atingia seu máximo reluzimento. Além disso, inocente como um cordeiro e delicada como um arminho, sentia ela muito agrado em apreciar as belas sonoridades da língua francesa, que falava na perfeição.
Nessa Paris, a tantos títulos assim amada, estabelecer-se-á Dª Lucilia durante algum tempo, tendo em vista também, e quiçá primordialmente, a formação de seus filhos.
Da famosa Place de l’Étoile, onde se ergue o Arco do Triunfo, parte, entre outras, a avenida Friedland. Nela se situa o Hotel Royal. Foi neste esplêndido estabelecimento, cujo proprietário era Monsieur de Dedrines, de nobre estirpe, que Dª Lucilia se hospedou com os seus em 1912.
Já na ancianidade, quase aos 92 anos, Dª Lucilia ainda guardará viva lembrança de vários pequenos episódios ocorridos por ocasião de sua estadia na França. Recordações estas que deixamos para um próximo post.


(Extraído, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias.)

Nenhum comentário:

Postar um comentário