Fachada da Clínica Real onde se deu a bem-sucedida
operação
de Dª Lucília
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Ora, Dª Lucília se sentia indisposta quando era obrigada a comer algo desse prato, por menor que fosse a quantidade. Com sua invariável doçura e elevadas maneiras, perguntou de que era aquela sopa. A enfermeira, compreendendo ter diante de si uma paciente muito delicada, e percebendo pela inflexão da voz sua incompatibilidade com aquele alimento, evitou lhe dizer a verdade, afirmando apenas tratar-se de uma comida indicada pelo próprio Dr. Bier.
Dª Lucília, não contente, insistiu (ela se comunicava com os alemães em francês ou inglês):
— A senhora sabe, eu me sinto muito incomodada com miolos. Não será disso a sopa?
A enfermeira, fitando-a nos olhos, afirmou então sem rodeios:
— É mesmo sopa de miolos, mas Dr. Bier deixou ordem expressa de que ela fosse servida à senhora.
Dª Lucília renovou várias vezes sua recusa em tomá-la, sem com isso conseguir convencer a implacável enfermeira. Pouco após tê-la ingerido, começou a sentir náuseas, o que deu origem a um súbito agravamento de seu estado de saúde. Não demorou para a tirania se transformar em desespero. A pobre enfermeira, vendo as dramáticas consequências de seu gesto, procurou ato contínuo o médico de plantão. Constatou, entretanto, haver ele pulado a janela para ir a uma festa, deixando completamente abandonados seus pacientes. Já quase sem saber o que fazer, recorreu a um médico de outro setor, a fim de que atendesse Dª Lucília.
Ao amanhecer, na visita que fazia a todos os seus doentes, Dr. Bier verificou serem as condições de Dª Lucília bem ruins, e quis então saber o que havia ocorrido. Esta, sem deixar de dizer a verdade em nenhum momento, evitou de acusar a enfermeira, livrando-a de uma justa punição. Por detrás do cirurgião, a tirana primeiramente se colocou em postura de súplica, com as mãos postas, a implorar que Dª Lucília não a fizesse perder o emprego. Tão logo se viu salva, desmanchou-se em manifestações de gratidão pelo nobre gesto de que fora objeto. Contudo, Dr. Bier, com espírito muito investigador, desconfiando de alguma falha no atendimento, não se deu por satisfeito e mandou chamar o médico de plantão, a fim de esclarecer a situação.
Esse fato deu lugar, mais uma vez, à insigne prática da virtude da caridade para com o próximo, da parte de Dª Lucília. Com a candura que lhe era tão característica, Dª Lucília voltou-se para seu afamado cirurgião e, sem especificar quem a assistira, disse:
— O médico esteve aqui.
E assim, contra seu próprio direito, salvou a situação daqueles que lhe deveriam ter dado o atendimento que seu estado de saúde exigia. Como é evidente, o irresponsável plantonista também se desfez em agradecimentos à sua protetora.
É impossível não encontrarmos nessas atitudes todos os traços de um heróico ato de virtude, fruto de uma verdadeira grandeza de alma. Era assim que Dª Lucília de forma invariável se comportava diante daqueles que, com maior ou menor gravidade, a faziam sofrer.
Início da demorada convalescença
Vista da praia de Binz, onde Dª Lucília iniciou sua demorada
convalescença
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A cada fase da convalescença, Dª Lucília enfrentava novos tipos de dificuldades. Restou-lhe como sequela da cirurgia uma inexplicável dor na planta dos pés que lhe impedia a locomoção. Assim, além de ser necessário submeter-se a sérios tratamentos, teve de usar, por algum tempo, sapatos com sola metálica, extremamente incômodos. As dores aumentaram a ponto de a obrigarem a utilizar uma cadeira de rodas.
Não obstante todos os problemas, Dª Lucília pôde refletir sobre as impressões dos lugares em que esteve, conservando-as até o fim da vida como luminosa recordação da velha Europa. Pouco depois, foi com os seus a Wiesbaden, situada perto do Reno, famosa estação de águas muito apropriadas à sua recuperação.
É onde a encontraremos, no próximo post...
(Extraído, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias.)
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