segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Viagem ao Velho Continente

Pudemos contemplar, nesses últimos posts, Dona Lucilia na harmoniosa, serena e suave intimidade do lar, desde o dia de seu casamento. Conhecemos a visita que fez ao formoso e distante Pernambuco. Com ela convivemos naqueles seus primeiros momentos de vida de família, nos quais os cuidados para com os filhos tinham o esmero de um ourives e a largueza de uma princesa. Acompanhamos de perto suas dores pelo falecimento de seu querido pai, e nos edificamos com sua firme e serena resolução de sempre prever eventuais tragédias que lhe pudessem suceder. Admiramos sua extraordinária elevação de vistas e sua bondade que se estendia bem fora do círculo de seus mais íntimos, sua figura serena, afável e compassiva, mas intransigente no cumprimento do dever, piedosa e penetrada de virtudes.
Que fulgor teria essa pérola, incrustada noutro diadema que não o seu? Que coloridos tomaria esse vitral sob a acção dos raios de outro sol? Como reagiria sua alma na velha Europa, em ambiente todo outro que não o deste Brasil tão de seu afeto?
Continuemos a acompanhar Dona Lucilia no momento em que o brilhante mundo da Belle Époque atingia seu apogeu.
Prof. Dr. August Karl Bier
Em 1912 foi Dª Lucília acometida por penosa enfermidade, em virtude da formação de cálculos na vesícula biliar, para a qual tornou-se imperioso encontrar uma solução definitiva. Embora jamais a vissem em atitude de inconformidade, pois seu temperamento era moldado pela resignação, os achaques dessa doença atingiram seu paroxismo, temendo-se uma crise que a conduzisse à morte. De fato, não eram raros naquela época os casos de óbito provocados pela moléstia. Por outro lado, mesmo sabendo-se que, em situações extremas, não havia alternativa a não ser extrair a vesícula, a medicina ainda não encontrara um modo de o fazer sem sérios riscos de vida para o doente.
Havendo-se então difundido pelo mundo a boa nova do êxito alcançado na Alemanha pelo Prof. Dr. August Karl Bier, médico particular do Kaiser, numa extração de vesícula biliar, a grande estima dos parentes de Dª Lucília por ela levou-os a não poupar esforços para fazê-la chegar até esse famoso especialista. Entre os que a acompanhariam não figuravam apenas seu esposo e filhos, mas também irmãos, cunhados e sobrinhos, e sobretudo sua mãe, Dª Gabriela.
Uma penosa viagem
Um trem os levaria até Santos, de onde iriam de navio ao porto do Rio de Janeiro, para ali embarcar rumo à Europa num confortável transatlântico alemão, em 11 de junho de 1912.
Antes mesmo de deixar o lar, no próprio dia da partida, Dª Lucília foi tomada por um acesso de violentas dores, que a obrigaram a permanecer recostada durante boa parte do trajeto de trem até Santos. Embora sofresse muito, inclusive no percurso até o Rio de Janeiro, não perdeu, um instante sequer, sua invariável e virtuosa serenidade de alma, o que lhe proporcionou contemplar o deslumbrante panorama com o qual Deus brindou aquela cidade. Hospedaram-se todos no Hotel dos Estrangeiros, um dos primeiros da Capital Federal, à espera de partirem para a Alemanha.
Singrando os mares, rumo ao Velho Continente
Chegando ao porto, no dia do embarque, Dª Lucília sentiu-se tão mal que, contorcendo-se de dor, teve de subir a bordo do transatlântico carregada pelo esposo e por um cunhado, diante dos olhos penalizados de seus filhos.
O vapor levanta âncoras e se vai distanciando da terra firme. Dª Lucília logo começa a sentir, em seu debilitado organismo, os efeitos de um balouçar marítimo que só poderia agravar seus males. Deitada em seu camarote, reza ao Sagrado Coração de Jesus implorando graças para que, segundo o divino modelo, com paciência e virtude suporte todos os incômodos de tão longa travessia.
Durante toda a viagem, ela ficaria em geral confinada em sua cabine. Não será raro encontrá-la erguida, agarrada aos apliques do lambri de seu aposento, à procura de uma posição que tornasse mais suportáveis seus sofrimentos, pois com frequência, estando deitada, seu mal-estar aumentava, como é habitual acontecer nesses casos.
Grande era a preocupação dos que a acompanhavam. Numa tarde, o irmão mais velho de Dª Lucília, Dr. Gabriel, passou em frente à carpintaria do navio, e qual não foi sua surpresa ao perceber alguns empregados que davam os últimos retoques num caixão funerário. Imediatamente indagou:
— Para quem é esse caixão?
— É para Frau Corrêa de Oliveira. Está tão mal que nosso comandante deu ordem de o deixarmos preparado para o caso de ela vir a falecer.
Tomado de ímpeto, Dr. Gabriel exigiu que o objeto fosse lançado ao mar... O episódio permanecerá nos anais da família. De um lado a candura de um germânico, respondendo com honesta e leal objetividade à pergunta que lhe é dirigida, sem se dar conta das consequências que daí poderiam advir. De outra parte, a aflição de quem jamais quereria pensar na morte da irmã.
Quanto a si, Dª Lucília, na paz de alma tão característica dos justos, ainda que envoltos pela tormenta das provações, jamais falará das próprias dores, a não ser depois de muita insistência. Renúncia a si mesma, afeto e dedicação desinteressada aos outros, eram as disposições com que recebia a cada um que transpusesse o limiar da porta de seu camarote. Seus dois filhos eram por ela tratados com extrema bondade, gravando-lhes de forma indelével, na alma, carinhosa recordação desse procedimento.
Desvelo para com o sobrinho difícil
Agostinho (Tito para os mais íntimos), um dos sobrinhos de Dª Lucília que a acompanhavam, era menino de temperamento difícil, surdo-mudo de nascença, que aprendera a falar em Viena, mas se exprimia de modo rouco e meio desagradável, por nunca ter ouvido o verdadeiro timbre da voz humana. Dª Lucília sempre o tratara com sua característica e incansável benevolência. E durante a viagem não foi diferente: era ele uma das mais assíduas visitas da tia, que o recebia com ternura e paciência, não poupando esforços a fim de resolver os problemas da criança.
Devido a seus males, além de não saber controlar a voz, Tito era incapaz de graduar o efeito de suas palavras ao dirigir-se a uma pessoa que se encontrasse em situação tão penosa como a de Dª Lucília. Faltava-lhe, pela pouca idade, o senso das circunstâncias e oportunidades, o que explica ter-lhe dito quase aos berros:
— Tia Lucília, estão dizendo que a senhora vai morrer. Eu não quero que a senhora morra!
Sem se alarmar face a esse trágico prognóstico, Dª Lucília logo se tomou de compaixão pelo sofrimento do menino, e dirigindo-se a ele, com semblante sereno e voz cheia de doçura, disse-lhe:
— Fique tranquilo, meu filho, não vou morrer...
Na Berlim imperial
Depois de navegar pelos mares tropicais, o vapor entrou em águas europeias. Passou ao largo das costas portuguesa, espanhola e francesa, transpôs o agitado Canal da Mancha e penetrou nas brumas do Mar do Norte. Por fim, atracou no famoso porto de Hamburgo, cidade repleta de tradições medievais. A família não pôde demorar-se ali, devido ao estado de Dª Lucília. Tomaram em seguida um trem para Berlim, capital do Império Germânico, distante cerca de 290 km.
Além do espírito bélico onipresente, a cidade apresentava aos visitantes lindas praças, jardins e monumentos, grandiosos palácios, residências de fino gosto e um sem-número de belas construções, em especial igrejas góticas, renascentistas, barrocas e de outros estilos, testemunhas de um passado rico em valores culturais e religiosos.
A Dª Lucília não foi dado o prazer de prestar atenção nos diversos aspectos de Berlim, apesar de, para ela, a observação dos ambientes constituir um dos lados mais interessantes da vida. Seus familiares rumaram para o belíssimo Fürstenhof (Hotel dos Príncipes), próximo da estação de Postdam, o qual oferecia, em meio a costumes cerimoniosos, todos os requintados luxos da Europa anterior à Primeira Guerra Mundial. Ela, pelo contrário, teve de seguir diretamente para o hospital.
Operação bem-sucedida
A mãe de Dr. Plinio seria operada, nos primeiros dias de julho, na Policlínica da Real Universidade de Frederico Guilherme, menina dos olhos do Kaiser. Dedicada não só ao tratamento das mais variadas moléstias, mas também à pesquisa científica, essa instituição hospitalar era mantida com cuidado extraordinário. A ordenação se patenteava nos menores detalhes, a ponto de os próprios pedregulhos no chão dos pátios serem pintados de branco. Aquela alvura em meio a jardins muito bem-arranjados proporcionará certo alívio a Dª Lucília nas agruras que terá ainda de suportar em sua convalescença.
Dª Gabriela e Dr. João Paulo diariamente, após o café da manhã, deixavam as crianças com a governante e iam estar com Dª Lucília no hospital. O quanto podiam, também os demais familiares iam vê-la. Quando de uma dessas visitas, ao encontrar Dª Lucília deitada no leito, a primeira impressão que tiveram foi de verem uma estátua, mais do que um ser vivente: os cabelos soltos, compridos e pretos, caindo por detrás do travesseiro, formavam uma cortina, os olhos voltados para o teto, absortos em cogitações, os braços estendidos ao longo do corpo. Apesar de seu estado, toda sua atitude era de firmeza, estabilidade, continuidade, decisão diante do risco que viria. Ela não mudaria, mas avançaria em linha reta. Era uma deliberação serena, inabalável e suave como quem diz: “Tem de ser assim e o será; Deus proverá”.
Logo ao notar a presença dos seus, Dª Lucília procurou lhes manifestar o carinho de sempre, mas com um fundo de gravidade e tristeza. Afinal, como transcorreria a intervenção cirúrgica? Seria bem-sucedida? No dia marcado, depois de uma manhã cercada de incertezas, os familiares dela receberam com enorme alívio a comunicação de ter sido Dr. Bier coroado de êxito. Dª Lucília, não obstante a vida felizmente salva, ainda passaria por sofrimentos que só aos poucos cessariam. O pós-operatório foi doloroso e complicado, dada a falta de recursos da medicina de então. As dores e aflições que padeceu naqueles dias foram tais que lhe deixaram marcas para o resto da vida. Em menos de uma semana seus cabelos ganharam diversas mechas brancas.
Debalde procuraram os médicos empregar todos os meios a seu alcance, a fim de aliviá-la. Porém, graças a seu espírito de resignação, encontrou ela um meio de conviver com a dor. Mantinha-se sempre deitada, evitando qualquer esforço físico, a fim de não serem gastas suas últimas resistências. A fisionomia denotava estar profundamente traumatizada, como a de alguém que tivesse enfrentado um “terremoto” interior. Entretanto, quando dela se aproximavam seus queridos filhos, recebia-os com indizível carinho. O sorriso e o afeto jamais estavam ausentes naquela maternal intimidade.


Extraído, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias.

Continua no próximo post

Nenhum comentário:

Postar um comentário