terça-feira, 14 de agosto de 2012

Primórdios de uma luminosa existência

Nossa Senhora da Penha

Nossa Senhora foi sua Madrinha

Aos vinte e nove dias do mez de junho de mil oitocentos e setenta e seis, nesta matriz, baptizei e puz os santos oleos a Lucilia, nascida a vinte e dois de Abril ultimo, filha legitima do doutor Antonio Ribeiro dos Sanctos e de dona Gabriela dos Sanctos Ribeiro: foram padrinhos, a Virgem Senhora da Penha e doutor Olympio Pinheiro de Lemos, todos desta Parochia.
O Vigário: Ângelo Alves d’Assumpção.
Essa é a ata do batismo de Dª Lucilia que se encontra no livro de registros paroquiais da Matriz da cidade  de  Pirassununga. Seguindo  piedoso  costume,  seus  pais  resolveram fazê-la afilhada da própria Rainha dos Céus . Dona Lucilia conservou, durante sua longa vida, uma devoção toda de afeto e respeito a sua  Madrinha, e várias vezes peregrinou  ao Santuário de Nossa Senhora da  Penha, em São Paulo, a fim de Lhe  confiar os segredos de seu terno coração .
Nascida a 22 de abril de 1876, primeiro  sábado  após  as  alegrias  da  Páscoa,  Lucilia  era  a  segunda  dos  cinco filhos de um casal de primos 1,  Dr . Antônio Ribeiro dos Santos e Dª  Gabriela Rodrigues dos Santos.
Descendentes de antigas estirpes  da aristocracia paulista, Dª Gabriela  e Dr . Antônio contavam entre seus  ancestrais  gloriosos  nomes  de  bandeirantes.
As famílias aristocráticas de São  Paulo — portadoras dos valores tradicionais que Portugal legou ao Brasil — abriram-se no século XIX para  o  rayonnement  da  cultura  francesa.  Tal influência lhes conferiu um particular requinte, uma visão larga e universal que vieram somar-se ao caráter empreendedor e ao notável senso de governo de que eram dotadas.  Atingiu,  assim,  a  plenitude  de  seu  florescimento  a  camada  social  dos  “paulistas de quatrocentos anos”.
Nos  Ribeiro  dos  Santos  essa  feliz aliança luso-francesa tem refulgido de modo eminente . Originada do  enlace entre o alferes português Joaquim Ribeiro dos Santos e Dª Maria Joana da Luz, de antiga linhagem paulista,  a  família  contou  em  seu  seio  numerosos políticos e advogados, quase todos fazendeiros, conhecidos pelo trato afável no salão e pela imponência na tribuna .

 Morte prematura da mãe de Dr. Antônio

 Provenientes do mesmo meio social, o Dr . Cândido Ribeiro dos Santos — filho do alferes Joaquim Ribeiro dos Santos — e Dª Maria Jesuína, pais de Dr. Antônio, casaram-se quando  a  noiva,  com  13 anos,  apenas  entrava  na  adolescência.  Embora  muito  educada, era tão menina  que  gostava  ainda  de brincar com bonecas . Contudo, parecia-lhe  melhor  fazê-lo  às  escondidas,  porquanto seu esposo  bem  poderia  não  entender  esse  gosto  infantil. Assim, aguardava os momentos oportunos  para  dar vazão a seus inocentes  hábitos.  O Dr. Cândido, médico  homeopata,  percorria  a  cavalo a capital da Província de São Paulo para atender sua  clientela . Uma escrava de Dª Jesuína postava-se do lado de fora da casa, espreitando a volta do senhor e,  vendo-o despontar ao longe, ia correndo avisar a menina:
  Sinhá  pequena,  o  sinhô  está  chegando.
Dª Jesuína, avó paterna de Dª Lucilia

Dona  Jesuína  escondia  depressa as bonecas numa gaveta e se preparava para esperar o marido, como  senhora da casa.
Com  o  passar  dos  anos,  o  lugar  das bonecas foi sendo sucessivamente  ocupado  por  quatro  filhos:  Antônio,  Ernesto,  Heroína  e  Alfredo .  Muita  alegria  proporcionaram  eles  à jovem mãe, até que, tendo circunstâncias  diversas  abalado  a  fundo  a  saúde dela, veio a falecer com apenas 23 anos de idade.
Algum tempo mais tarde, Dr. Cândido contraiu matrimônio com Mademoiselle Beaugrand 2, deixando a seus cuidados os filhos do primeiro casamento.
O primogênito de Dr . Cândido e de Dª Jesuína, Antônio, nascido em  1848, conheceu Gabriela, sua futura  esposa, desde a infância . Ela era sua  prima e tinha quatro anos a menos do  que ele . Ficaria muito cedo órfã de  pai, o que levara seu tio, Dr . Cândido,  a tratá-la com paternal carinho.
A fim de distrair a sobrinha, o médico tomou o costume de passar pela casa dela e levá-la consigo nas visitas  aos clientes . Com os cabelos primorosamente cacheados e bem arranjadinha por sua mãe, a menina Gabriela passeava feliz por São Paulo, na garupa do cavalo de seu tio. Entre outros lugares, iam ao Convento da Luz, cujas freiras tratavam com Dr. Cândido. As religiosas logo se tomaram de simpatia e se desdobravam em  atenções pela  menina,  a  quem  chamavam  Gabrielinha. Nasceram daí laços de amizade que Dª Gabriela conservou a vida inteira. Tornou-se muito devota do venerável fundador do convento, o Bem-aventurado Frei Galvão, e adquiriu o hábito de escrever às freiras pedindo orações para obter alguma graça, enviando-lhes  de  quando  em  quando  algum  presente .

 “Como ela é bonitinha”

Acima, a menina Lucilia (de pé), junto a seus irmãos
Ao iniciar as narrações sobre a infância de sua mãe, Dª Lucilia costuma contar um encontro de Dª Gabriela com a Marquesa de Santos.
Entre os filhos do alferes Joaquim  Ribeiro  dos  Santos  e  de    Maria  Joana da Luz, sobressaía o primogênito, avô materno de Dª Lucilia, Dr. Gabriel José Rodrigues dos Santos. Causeur brilhante, foi ele intelectual e homem público de relevo, um  dos  parlamentares  mais  destacados  de seu tempo, na então Província de  São Paulo. Formado em Direito na histórica Faculdade do Largo de São  Francisco, exerceu depois com maestria a função de professor catedrático de Direito Comercial. Além de Secretário de Estado do Presidente  da Província de São Paulo, Brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar, foi deputado à Assembléia Provincial Paulista, e mais tarde deputado por São  Paulo, na Câmara dos Deputados do  Império. Fogoso orador, participou de debates notáveis nessas duas câmaras legislativas .
Anos depois, a avó materna de Dª  Lucilia, Dª Brasilina Amélia de Paula  Fernandes,  conhecida  como  Dª Bibila — também de família tradicional — manteve, como era natural,  relações  cordiais  com  a  esposa  do  Brigadeiro, a Marquesa de Santos.
Certa  manhã,    Bibila  saiu  a  passeio com sua filha, Gabriela, pela  Rua do Carmo, onde morava a marquesa . Pouco a pouco foram divisando ao longe, em meio à neblina, a silhueta da famosa personagem. Debruçada no parapeito de uma janela alta, olhava com interesse os transeuntes, como era costume na “São  Paulinho” daquela época .
Dona Bibila se aproximou, e após cumprimentá-la e conversar um pouco, disse-lhe:
— Marquesa, esta é minha filha  Gabriela, que ainda não lhe apresentei .
— Cheguem mais perto, para que eu a veja melhor. Tendo a menina se aproximado, exclamou a marquesa:
— Oh! mas como ela é bonitinha! Entrem aqui um pouco: quero pôr uma flor no cabelo dela.
Já na sala de visitas, a marquesa  mandou que os domésticos lhe trouxessem biscoitos e suspiros para Gabriela .  Observando-a  com  atenção,  achou-a  ainda  mais  graciosa  e,  antes da despedida, pediu-lhe um beijo . Desse inesperado encontro a menina nunca se esqueceria.

Casamento dos pais

Dª Gabriela, mãe de Dª Lucilia
Como era muito bonita, Gabriela, ao se tornar moça, teve inúmeros pretendentes, entre os quais dois Antônios, primos um do outro e dela própria: “Totó”, o já referido primogênito de Dr . Cândido; e “Totozinho”, filho de Dª Jesuína Ribeiro  dos Santos, irmã de Dr . Cândido.
Certa vez, os dois pretendentes subiram a uma árvore, no quintal da casa de sua avó, Dona Joana  da Luz, para apanhar frutas . Começaram a conversar e foi só o assunto cair em Gabriela que, num piscar de olhos, já discutiam asperamente, afirmando ambos  que  iriam  se  casar com ela. Totó, perdendo a paciência, jogou Totozinho árvore abaixo, deixando-o bastante ressentido pelo tombo. Após anos de disputa, o filho de Dr . Cândido novamente levou a melhor, acabando por obter a mão de Gabriela .
Dr Antonio, pai de Dª Lucilia
Pouco depois de formar-se em Direito pela Faculdade  do  Largo  de  São  Francisco,  Dr.  Antônio  casou-se com ela e, abandonando a capital  paulista, fixou residência na pequenina cidade de Pirassununga.
Nesse então longínquo e difícil interior, Dª Lucilia nasceria e viveria até completar 15 anos.

(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)





¹ ) Naqueles tempos, era relativamente freqüente o casamento entre primos.
² ) Filha de franceses e proprietária de uma casa de modas no centro da cidade.



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