terça-feira, 4 de agosto de 2015

Carinho extremo... ( cont)

Continuação do post anterior
O Colégio do Caraça era considerado uma prisão
Cheguei a minha casa e encontrei mamãe no quarto de toilette dela — era uma espécie de sala de estar que as senhoras tinham antigamente —, sentada numa cadeira de balanço perto da escrivaninha. Lembro-me perfeitamente da cena. Ela com certeza havia escrito alguma coisa e estava descansando um pouco.
Entrei e disse-lhe:
— Meu bem, aqui está o meu boletim.
Muito afetuosa, ela o abriu e seus olhos caíram imediatamente naquele empastelado.
Perguntou-me, então:
— O que é isto aqui? O que aconteceu?
— Mamãe, recebi esse boletim e, mesmo debaixo da chuva, eu quis ver quais eram as minhas notas e caiu água sobre ele.
— Mas aqui em cima dessa nota seis o que você escreveu? A letra é sua. Por que você anotou uma coisa em cima daquilo que o padre escreveu? Você quer me explicar isso? Vamos, explique!
Não havia explicação, eu estava encostado na parede.
— Mamãe, eu falsifiquei a nota.
— Ah! Você falsificou a nota? Então eu sou mãe de um falsário? Meu filho falsifica a letra dos outros?
Passou-me então um pito, dizendo que todo falsário é ordinário, sem-vergonha, e quem falsifica a letra de outro vai para a cadeia.
— Você merecia ir para a prisão. Sabe de uma coisa? Eu vou mandá-lo para uma cadeia.
Havia em Minas Gerais um colégio, o qual, em São Paulo, tinha a fama de ser severíssimo, verdadeiramente a cadeia de meninos insuportáveis. Toda criança da capital paulista tinha horror a ir para esse colégio. Era uma calúnia que espalharam em São Paulo, porque está provado que tal colégio era muito bom, muito direito. De maneira que eu estava certo de que se tratava de uma cadeia. É o Colégio do Caraça, em Minas Gerais, situado num lugar muito bonito, com montanhas etc.
Mamãe continuou:
— Você irá para o Colégio do Caraça. Eu vou esperar seu pai chegar do escritório — meu pai era advogado e voltava para casa na hora do jantar. Quando ele chegar, vou mostrar-lhe o que você fez, e amanhã ele, levando esse boletim, irá falar com o padre, para perguntar o que você fez. Conforme o que você praticou, eu vou mandá-lo para o Caraça.
Fiquei horrorizado e ela acrescentou:
— Eu vou passar um ano sem vê-lo, e você também vai passar um ano sem me ver. Sofrerei muito mais do que você, porque eu quero mais bem a você do que você quer a mim. Mas, se é para seu bem, eu o mando para lá. Estando no Caraça, lembre-se de que sua mãe está chorando infeliz porque você está na prisão. Mas você vai para a cadeia. Entrei numa grande depressão, mas não disse nada a ela. Não pedi perdão — o que era malfeito, pois devia ter pedido. Ela não se aproximou de mim para que eu a beijasse; todos os dias, quando eu chegava do colégio eu a beijava várias vezes, e ela me beijava também. Entendi que eu não podia nem me aproximar, porque era um falsário! Como é que um falsário vai se aproximar de uma senhora digna de tal veneração e pela qual eu tinha tanta ternura? Saí e fiquei muito abatido.
Se não me engano, era um sábado e o Colégio São Luís já estava fechado. Então, papai iria ao colégio somente na segunda-feira. Fiquei esperando, portanto, o resto de sábado, domingo e parte da segunda-feira. Mas eu nem ousei perguntar a meu pai a que horas ele iria; fiquei quieto, colocando-me de lado como uma espécie de bicho doente e repugnante.
Imagem de Nossa Senhora Auxiliadora
No domingo de manhã, fui à Missa. A minha casa, naquele tempo, ficava muito próxima da Igreja Coração de Jesus, umas três ou quatro quadras num terreno quase inteiramente plano. Para um menino de onze, doze anos isso não é nada. Chegando à igreja, vi que haveria Missa para os alunos do Colégio Coração de Jesus. Os meninos entravam cantando e iam ocupando os lugares da nave central, enquanto que as pessoas do povo ficavam nas naves laterais. Eu estava na nave direita de quem olha para o altar-mor.
Eu via também à minha frente a linda imagem, em mármore absolutamente branco, de Nossa Senhora Auxiliadora, tendo sobre sua cabeça uma coroa não fechada e com o Menino nos braços.
Há coroas fechadas, quer dizer, têm como que gomos os quais se unem no alto, onde há uma esfera e uma cruz. Significam domínio completo, soberania, e são usadas pelos reis. As abertas, como um círculo em torno da cabeça, tendo alguns ornatos, são para os simples nobres.
A coroa de Maria Santíssima é aberta porque, em comparação com Nosso Senhor, Ela é uma súdita. Jesus é o Homem-Deus, portanto não há ninguém que se iguale a Ele.
A simbologia é muito bonita. Nossa Senhora tem o Menino no braço esquerdo, e no direito Ela segura um cetro, para dar a entender que o mando é d’Ela. O Menino está risonho, como quem está contente de ter dado o cetro para a Mãe, e Ela está olhando para os fiéis.
Salvai-me Rainha…
Em determinado momento, tive uma impressão singular, que não foi nenhum milagre: a imagem não se moveu absolutamente nada, mas pareceu-me que a Santíssima Virgem me olhava com certa pena. E instintivamente comecei a rezar a Salve Rainha, que era a oração da qual me lembrava.
Essa prece começa com “salve”, que é uma palavra latina. Salve Maria, por exemplo, quer dizer “saudada sejas, Maria!”. Para a saudação — como hoje dizemos bom-dia, boa-tarde —, antigamente se dizia “salve”.
Então Salve Regina, Mater misericordiae, quer dizer “Eu Vos saúdo Rainha, Mãe de misericórdia.” Mas eu não entendi isso; achei que “salve” significava “salvai-me”. Pensei: “Preciso de alguém que me salve desse embrulho, e vou pedir para Nossa Senhora, a Qual está como que sorrindo para mim.”
Anteriormente, eu já havia rezado algumas “Salve Rainhas”, mas nunca tinha fixado muita atenção nas palavras. Naquele apuro em que me encontrava, prestei uma atenção profunda nos termos. Então: “Salve Rainha, Mãe de misericórdia, vida, doçura, esperança nossa, salve...”
À medida que eu ia rezando, pensava: “Estou precisando de Maria Santíssima, porque mamãe me abandonou, merecidamente. Ela é Mãe de misericórdia, mais ainda do que mamãe, porque é Mãe do Menino Jesus. Então Ela é indizivelmente mais perfeita do que mamãe, e onde nem mamãe tem pena — e possui razão para isso — Nossa Senhora tem compaixão. Então vou pedir para Ela.” E assim fui meditando nas palavras dessa prece.
Salve Rainha: “Compreende-se, é Mãe do Menino Jesus.”
Mãe de misericórdia: “Bem pensado, Mãe toda feita de misericórdia. Um falsário como eu precisa de misericórdia, porque se não obtiver misericórdia estou perdido, liquidado.”
Vida doçura, esperança nossa, salve: “Está vendo? Nossa Senhora é nossa vida, nossa doçura, nossa esperança. Que oração bem feita!” Assim eu rezei toda a Salve Rainha com uma emoção interior muito forte. Depois de ter rezado várias vezes, cheguei à conclusão: “Nossa Senhora vai me tirar dessa bagunça.”
 Assim “começou a minha devoção a Nossa Senhora”
Na segunda-feira, ao chegar a minha casa, perguntei para o copeiro:
— Dr. João Paulo já voltou do São Luís?
Tinha ele uma voz cantante:
— Já, sim, senhor.
— Onde ele está?
— Com Dona Lucilia.
Estavam no apartamento deles, que era um prolongamento da casa. Fui para lá e encontrei os dois conversando, mas não tinham fisionomia carrancuda. Mamãe muito calma me olhou e disse:
— Filhão, venha cá e dê um abraço e um beijo em sua mãe.
Eu corri em direção a ela.
Mamãe continuou:
— Você está inocente. Seu pai foi falar com o padre, o qual mandou chamar o funcionário que passa a limpo as notas. O próprio funcionário reconheceu que a sua nota era dez e por engano ele anotou seis. Agora, você não faça mais essa bobagem de estar alterando notas; isso é muito feio.
E não falou mais em me mandar para o Caraça.
Na saída, ela me disse:
— Então, mais um beijo para mamãe.
Tirei várias vantagens desse fato. Primeira: aprendi a ter temor reverencial a mamãe. É sempre bom ter medo dos superiores. Segunda vantagem: aprendi a querê-la ainda mais, por causa da perfeição moral que eu notava nela. Terceira, a qual vale todas as vantagens da Terra e mais algumas do Céu: começou aí a minha devoção a Nossa Senhora.

Plinio Correa de Oliveira – Extraído de conferência de 9/7/1994

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