Continuação do post anterior
O Colégio do Caraça era
considerado uma prisão
Cheguei
a minha casa e encontrei mamãe no quarto de toilette dela — era uma espécie de
sala de estar que as senhoras tinham antigamente —, sentada numa cadeira de
balanço perto da escrivaninha. Lembro-me perfeitamente da cena. Ela com certeza
havia escrito alguma coisa e estava descansando um pouco.
Entrei
e disse-lhe:
— Meu
bem, aqui está o meu boletim.
Muito
afetuosa, ela o abriu e seus olhos caíram imediatamente naquele empastelado.
Perguntou-me,
então:
— O que
é isto aqui? O que aconteceu?
—
Mamãe, recebi esse boletim e, mesmo debaixo da chuva, eu quis ver quais eram as
minhas notas e caiu água sobre ele.
— Mas
aqui em cima dessa nota seis o que você escreveu? A letra é sua. Por que você
anotou uma coisa em cima daquilo que o padre escreveu? Você quer me explicar
isso? Vamos, explique!
Não
havia explicação, eu estava encostado na parede.
—
Mamãe, eu falsifiquei a nota.
— Ah!
Você falsificou a nota? Então eu sou mãe de um falsário? Meu filho falsifica a
letra dos outros?
Passou-me
então um pito, dizendo que todo falsário é ordinário, sem-vergonha, e quem
falsifica a letra de outro vai para a cadeia.
Havia
em Minas Gerais um colégio, o qual, em São Paulo, tinha a fama de ser
severíssimo, verdadeiramente a cadeia de meninos insuportáveis. Toda criança da
capital paulista tinha horror a ir para esse colégio. Era uma calúnia que
espalharam em São Paulo, porque está provado que tal colégio era muito bom,
muito direito. De maneira que eu estava certo de que se tratava de uma cadeia.
É o Colégio do Caraça, em Minas Gerais, situado num lugar muito bonito, com
montanhas etc.
Mamãe
continuou:
— Você
irá para o Colégio do Caraça. Eu vou esperar seu pai chegar do escritório — meu
pai era advogado e voltava para casa na hora do jantar. Quando ele chegar, vou
mostrar-lhe o que você fez, e amanhã ele, levando esse boletim, irá falar com o
padre, para perguntar o que você fez. Conforme o que você praticou, eu vou
mandá-lo para o Caraça.
Fiquei
horrorizado e ela acrescentou:
— Eu
vou passar um ano sem vê-lo, e você também vai passar um ano sem me ver.
Sofrerei muito mais do que você, porque eu quero mais bem a você do que você
quer a mim. Mas, se é para seu bem, eu o mando para lá. Estando no Caraça,
lembre-se de que sua mãe está chorando infeliz porque você está na prisão. Mas
você vai para a cadeia. Entrei numa grande depressão, mas não disse nada a ela.
Não pedi perdão — o que era malfeito, pois devia ter pedido. Ela não se
aproximou de mim para que eu a beijasse; todos os dias, quando eu chegava do
colégio eu a beijava várias vezes, e ela me beijava também. Entendi que eu não
podia nem me aproximar, porque era um falsário! Como é que um falsário vai se
aproximar de uma senhora digna de tal veneração e pela qual eu tinha tanta
ternura? Saí e fiquei muito abatido.
Se não
me engano, era um sábado e o Colégio São Luís já estava fechado. Então, papai
iria ao colégio somente na segunda-feira. Fiquei esperando, portanto, o resto
de sábado, domingo e parte da segunda-feira. Mas eu nem ousei perguntar a meu
pai a que horas ele iria; fiquei quieto, colocando-me de lado como uma espécie
de bicho doente e repugnante.
Imagem de Nossa Senhora Auxiliadora
No
domingo de manhã, fui à Missa. A minha casa, naquele tempo, ficava muito
próxima da Igreja Coração de Jesus, umas três ou quatro quadras num terreno
quase inteiramente plano. Para um menino de onze, doze anos isso não é nada.
Chegando à igreja, vi que haveria Missa para os alunos do Colégio Coração de
Jesus. Os meninos entravam cantando e iam ocupando os lugares da nave central,
enquanto que as pessoas do povo ficavam nas naves laterais. Eu estava na nave
direita de quem olha para o altar-mor.
Eu via
também à minha frente a linda imagem, em mármore absolutamente branco, de Nossa
Senhora Auxiliadora, tendo sobre sua cabeça uma coroa não fechada e com o
Menino nos braços.
Há
coroas fechadas, quer dizer, têm como que gomos os quais se unem no alto, onde
há uma esfera e uma cruz. Significam domínio completo, soberania, e são usadas
pelos reis. As abertas, como um círculo em torno da cabeça, tendo alguns
ornatos, são para os simples nobres.
A coroa
de Maria Santíssima é aberta porque, em comparação com Nosso Senhor, Ela é uma
súdita. Jesus é o Homem-Deus, portanto não há ninguém que se iguale a Ele.
A
simbologia é muito bonita. Nossa Senhora tem o Menino no braço esquerdo, e no
direito Ela segura um cetro, para dar a entender que o mando é d’Ela. O Menino
está risonho, como quem está contente de ter dado o cetro para a Mãe, e Ela
está olhando para os fiéis.
Salvai-me Rainha…
Em
determinado momento, tive uma impressão singular, que não foi nenhum milagre: a
imagem não se moveu absolutamente nada, mas pareceu-me que a Santíssima Virgem
me olhava com certa pena. E instintivamente comecei a rezar a Salve Rainha, que
era a oração da qual me lembrava.
Essa
prece começa com “salve”, que é uma palavra latina. Salve Maria, por exemplo,
quer dizer “saudada sejas, Maria!”. Para a saudação — como hoje dizemos
bom-dia, boa-tarde —, antigamente se dizia “salve”.
Então Salve Regina, Mater misericordiae, quer
dizer “Eu Vos saúdo Rainha, Mãe de misericórdia.” Mas eu não entendi isso;
achei que “salve” significava “salvai-me”. Pensei: “Preciso de alguém que me
salve desse embrulho, e vou pedir para Nossa Senhora, a Qual está como que
sorrindo para mim.”
Anteriormente,
eu já havia rezado algumas “Salve Rainhas”, mas nunca tinha fixado muita
atenção nas palavras. Naquele apuro em que me encontrava, prestei uma atenção
profunda nos termos. Então: “Salve Rainha, Mãe de misericórdia, vida, doçura,
esperança nossa, salve...”
À
medida que eu ia rezando, pensava: “Estou precisando de Maria Santíssima,
porque mamãe me abandonou, merecidamente. Ela é Mãe de misericórdia, mais ainda
do que mamãe, porque é Mãe do Menino Jesus. Então Ela é indizivelmente mais
perfeita do que mamãe, e onde nem mamãe tem pena — e possui razão para isso —
Nossa Senhora tem compaixão. Então vou pedir para Ela.” E assim fui meditando
nas palavras dessa prece.
Salve
Rainha: “Compreende-se, é Mãe do Menino Jesus.”
Mãe de
misericórdia: “Bem pensado, Mãe toda feita de misericórdia. Um falsário como eu
precisa de misericórdia, porque se não obtiver misericórdia estou perdido,
liquidado.”
Vida
doçura, esperança nossa, salve: “Está vendo? Nossa Senhora é nossa vida, nossa
doçura, nossa esperança. Que oração bem feita!” Assim eu rezei toda a Salve
Rainha com uma emoção interior muito forte. Depois de ter rezado várias vezes,
cheguei à conclusão: “Nossa Senhora vai me tirar dessa bagunça.”
Assim “começou a minha devoção a
Nossa Senhora”
Na
segunda-feira, ao chegar a minha casa, perguntei para o copeiro:
— Dr.
João Paulo já voltou do São Luís?
Tinha
ele uma voz cantante:
— Já,
sim, senhor.
— Onde
ele está?
— Com
Dona Lucilia.
Estavam
no apartamento deles, que era um prolongamento da casa. Fui para lá e encontrei
os dois conversando, mas não tinham fisionomia carrancuda. Mamãe muito calma me
olhou e disse:
— Filhão,
venha cá e dê um abraço e um beijo em sua mãe.
Eu
corri em direção a ela.
Mamãe
continuou:
— Você
está inocente. Seu pai foi falar com o padre, o qual mandou chamar o
funcionário que passa a limpo as notas. O próprio funcionário reconheceu que a
sua nota era dez e por engano ele anotou seis. Agora, você não faça mais essa
bobagem de estar alterando notas; isso é muito feio.
E não
falou mais em me mandar para o Caraça.
Na
saída, ela me disse:
—
Então, mais um beijo para mamãe.
Tirei
várias vantagens desse fato. Primeira: aprendi a ter temor reverencial a mamãe.
É sempre bom ter medo dos superiores. Segunda vantagem: aprendi a querê-la
ainda mais, por causa da perfeição moral que eu notava nela. Terceira, a qual
vale todas as vantagens da Terra e mais algumas do Céu: começou aí a minha
devoção a Nossa Senhora.
Plinio
Correa de Oliveira – Extraído de
conferência de
9/7/1994
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