sábado, 17 de janeiro de 2015

Lembranças de um convívio

Recordando o relacionamento que tivera com sua mãe, principalmente no período da formação de sua mentalidade, Dr. Plinio comenta, na presente conferência, o papel exercido pelo convívio com Dona Lucilia, sobretudo, em seu gosto pela reflexão.
Jamais me esquecerei do olhar de mamãe. Em Dona Lucilia, voz e olhar faziam um todo só com o trato, mas o olhar era mais expressivo do que a palavra. Inúmeras vezes peregrinei dentro desse olhar e, no fim de sua vida, não havia recanto do olhar dela que, como bom peregrino, eu não tivesse conhecido. Seus olhos, nem bonitos nem feios, eram de um castanho tendente ao escuro. Quando ela olhava de um certo modo, aquele castanho dava a impressão de estar habitado por luzes, proporcionando-lhe um brilho que o levava quase ao castanho-claro. Era a expressão de um determinado estado de espírito. Outras vezes acontecia o contrário. Se ocorresse algo muito sério e grave, com muitas conseqüências, ela fixava a atenção de maneira tal que as meninas de seus olhos ficavam nitidamente pretas.
Imaginem um cristal convexo com uma tonalidade “X”, através do qual se vê uma catedral. Tem-se a impressão de que tal tonalidade ilumina toda a catedral e a transforma em uma feeria com vários matizes dessa cor. Suponham que o cristal se torne côncavo; a luz brinca em sua concavidade, causando outras sensações. Esse é o olhar humano inocente. O olhar de mamãe era assim.
Podemos julgar que o olhar profundo é aquele que olha para nós pensando em outra coisa. Isso na melhor das hipóteses é uma das profundidades do olhar. Há duas espécies de olhar profundo: um é o que vê, outro é aquele que dentro do qual se olha fundo. Em geral, naquele em que se olha fundo, vêse algo que olha profundo. Conforme as horas, as circunstâncias, o olhar de Dona Lucilia mudava, causando-me a impressão de um vitral que passava de convexo a côncavo.
Truculência e respeito
Nosso relacionamento era mais ou menos análogo ao dos sons de um órgão e os ecos por este produzidos no templo. Ela era a música e eu o eco. Tudo quanto havia nela ecoava em mim de modo muito profundo, mas nem tudo que existe em mim ecoava nela. Não por discordância, mas em razão do número de gamas. Além da truculência, há uma série de outras coisas no meu modo de ser que não era o dela. Fui desenvolvendo tudo isso sem lhe dar explicações, mas ela ia vendo. Apenas em relação à minha truculência mamãe fazia observações, não censurando, mas ponderando. Quanto ao resto, ela foi observando, presenciando, sem nunca me dizer uma palavra.
Dessa forma eu deduzia que ela, embora não fosse assim, compreendia que seu filho o devesse ser. Quanto à truculência, às vezes mamãe ficava um tanto alarmada com algumas coisas que eu dizia. Por exemplo, certo dia, ao sentar-me à mesa, provei a manteiga e notei que estava com gosto de sebo. Pela minha fisionomia, ela percebeu que eu não havia gostado.
— Meu bem, não está boa a manteiga?
Eu lhe respondi:
— Está com gosto exato de graxa de trilhos!
Ela ficou quietinha, como quem diz: “Meça as palavras...” E eu, ao mesmo tempo indignado com a manteiga e encantado com mamãe, apreciava sua reação que era de um tato exato. Ela não se zangava, nem procurava defender a manteiga. Então, com um tom mais baixo, eu disse:
— Meu bem, é uma graxa perfeita...

Mudei de assunto e pouco depois ela estava conversando alegre. Com frequência, eu manifestava truculências — evidentemente sem nunca faltar com o respeito e o afeto para com ela.
Continua no próximo post

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