Em sua infatigável solicitude materna, Dª Lucilia tinha
especial empenho em acompanhar de tão perto quanto lhe fosse possível as
atividades apostólicas de seu querido filho. Este, após ter assumido a direção
do “Legionário”, o foi progressivamente ampliando e nele passou a abordar temas
de envergadura e profundidade cada vez maiores. Em pouco tempo, Dr. Plinio o
transformou de pequena folhinha quinzenal de paróquia em prestigioso semanário,
com repercussão internacional, e órgão oficioso da importante arquidiocese
paulistana. De tal forma isso se deu que era ponto de honra para as maiores
personalidades do mundo católico, de passagem por São Paulo, fazerem uma visita
ao jornal.
Em 1938 esteve na capital paulista o famoso almirante
Yamamoto, veterano de muitas batalhas nos ignotos e longínquos mares do Extremo
Oriente e líder católico de destaque no Japão (¹).
Logo ao chegar a São Paulo, procurou entrar em contato com
Dr. Plinio e o “Legionário”. A fim de lhe retribuir a amabilidade da visita,
Dr. Plinio convidou-o para jantar em sua casa, certo de que Dª Lucilia teria
muito gosto em recebê-lo. Manifestou ela o desejo de ter também como comensal
sua filha, Dª Rosée, cuja conversa brilhante e ligeira só poderia concorrer
para interessar a todos os presentes.
Descendente de samurais — uma das categorias da nobreza do
Império do Sol Nascente — homem deveras fino e de grande cultura, o almirante
possuía todo um conjunto de qualidades que contribuíam para lhe conferir uma
personalidade peculiar, profundamente marcada pela nota católica, porém muito
diversa dos estilos ocidentais.
Fazendo-se acompanhar de uma alta personalidade do corpo
consular nipônico em São Paulo, o insigne convidado compareceu com pontualidade
militar à casa de Dª Lucilia, que o acolheu com a amabilidade característica
das damas da antiga sociedade paulista.
A conversa, continuamente em francês, desenrolou-se de modo
espontâneo em torno de recordações religiosas, militares e sociais do ilustre
visitante. Tendo ele participado de inúmeras ações navais, não foi difícil
levá-lo a contar alguns dos feitos que a justo título o cobriram de glória.
Bastou tocar no assunto para seu enigmático olhar amendoado se acender, por
detrás de uma impassível expressão fisionômica.
— Ah! batalhas! São
uma coisa muito bonita!
Dr. Plinio perguntou amavelmente:
— Mas, almirante, o senhor participou de vários combates
navais, não é?
— Sim, inúmeros. — Não o cansaria descrever o episódio
culminante, mais bonito, mais arriscado, das guerras de que o senhor
participou? — propôs Dr. Plinio.
O almirante sentiu-se à vontade, ao comprovar o real
interesse de seu anfitrião, tanto mais que se tinha entregado de corpo e alma à
profissão da guerra e nela sabia ver o lado grandioso.
— Pois não, professor, com muito gosto — respondeu.
No seu entusiasmo pelo combate, o visitante talvez não se
tenha dado conta de não penderem os gostos e preferências de Dª Lucilia
especialmente para este lado. Ela, que consentiria na imolação de seu próprio
filho numa luta em defesa da Santa Igreja, não podia deixar de se condoer pela
sorte de tantos infelizes, mortos numa guerra terrível, destituída de
significado religioso. Um certo suspense tomou conta dos circunstantes, mas
como a conversa era feita para agradar ao visitante, ninguém o interrompeu,
prosseguindo ele seu relato:
Foi na batalha de Tsushima, durante a Guerra Russo-Japonesa,
em 1905, em que pusemos a pique o grande couraçado russo Tsarevich.
— Mas como se deu isso? — perguntou Dr. Plinio.
— Ah! O senhor não imagina, que maravilha! O couraçado, um
dos mais bem equipados do mundo, orgulho da marinha de seu país, era o
navio-almirante da frota que combatíamos. Foi uma batalha terrível, com dezenas
de navios afundados...
A fisionomia de Dª Lucilia ia-se tornando cada vez mais séria
e consternada ao ouvir aquelas palavras. O almirante Yamamoto, sem atinar com a
reação dela, prosseguiu calma e alegremente:
— Aquele enorme couraçado passou bem diante do navio que eu
comandava, em posição tal que não podíamos perder a oportunidade... Nossos
tiros foram certeiros! Depois de o bombardearmos, emborcou de tal modo que a
popa afundou e a proa ficou no ar. Vimo-lo quase inteiramente na vertical.
Dª Lucilia acompanhava a narração passo a passo, compadecida
com o terrível sofrimento daqueles pobres marinheiros que iriam ser tragados
pelas profundezas dos mares. Chegando a esse ponto, perguntou ela, penalizada:
— E como foi, então?
Entusiasmado continuou o almirante:
— Minha senhora, afundou completa e diretamente!
— Ahhh! — exclamou Dª Lucilia, com ligeiro sobressalto.
Embora o tema agradasse sobremaneira ao heróico combatente,
ainda mais seu fogo se acendeu quando Dr. Plinio conduziu a conversa para
abordar certas questões doutrinárias, na época muito controvertidas. Quem o
haveria de dizer? O valente cabo-de-guerra se pôs então de pé, enrubescido, e
começou a falar alto. Bem entendido, seus interlocutores o deixaram discorrer à
vontade, até que, aquietado, passou espontaneamente para outro tema. Terminado
o jantar, Yamamoto se despediu com cortesia de Dª Lucilia, levando para sua
distante terra natal a recordação daquela afável senhora.
Anos mais tarde, ao ter notícia de sua morte, Dª Lucilia
ficou muito entristecida e rezou fervorosamente por seu eterno descanso, pois
não era só o Japão que perdia um guerreiro de valor, mas era sobretudo a Igreja
que via suas fileiras desfalcadas de um destemido militante.
Afetuoso
artifício
Se Dª Lucilia se condoía tanto das vítimas de uma guerra
longínqua, muito mais se compadecia daqueles que lhe eram chegados. Embora
essas qualidades nela reluzissem discreta mas possantemente, todos os afetos de
seu coração sempre se mantiveram subordinados a uma constante elevação de
espírito e amor de Deus, fonte das virtudes que praticava.
O modo como tratava um de seus parentes afastados, que tivera
a infelicidade de ficar cego ainda menino, em virtude de uma imperícia médica,
é um exemplo desses predicados.
O fato de ser ele ateu inveterado levava Dª Lucilia a ter
ainda mais pena do infeliz. Por isso não poupava oportunidade de lhe fazer
algum bem, com a intenção de tocar sua alma.
Com frequência o recebia para almoçar ou jantar, e nessas
circunstâncias o entretinha horas inteiras. Ato de caridade do qual também
participavam Dr. João Paulo e Dr. Plinio.
Sabendo ter esse seu parente muito bom apetite, e conhecendo
seu comedimento, Dª Lucilia combinou com a empregada: quando lhe fizesse sinal,
deveria aproximarse com a travessa e, sem ele perceber, servir-lhe um pouco
mais.
Ora, ele tinha o hábito de correr o garfo pela periferia do
prato e depois por toda a sua superfície, à procura dos alimentos. De repente,
quando julgava já estar no fim, encontrava — com evidente comprazimento — outra
porção de comida!
Dª Lucilia assim procedeu até a extrema velhice desse
parente, não apenas satisfazendo os gostos gastronômicos dele, como também
dispondo-se à prosa que mais lhe agradasse. Era a solicitude levada ao último
ponto.
Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de Mons. João
S. Clá Dias
1) Estêvão Shinjiro Yamamoto nasceu em 1878. Aos 17 anos foi
batizado na Religião Católica. Combateu na Guerra Russo-Japonesa e na Primeira
Grande Guerra. Como líder católico, promoveu a divulgação da literatura e do
movimento de jovens católicos. Não se deve confundi-lo com outro almirante
Yamamoto, comandante das Forças Combinadas japonesas na Segunda Guerra Mundial.

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