quarta-feira, 22 de maio de 2013

“Uma das maiores provações de minha vida”

Dona Lucilia viu, com sumo agrado, chegar o solene dia da graduação de seu filho Plinio.
Naquele tempo, em que sociedade estava menos corroída pelo igualitarismo do que hoje, as atividades intelectuais eram ainda cercadas de proporcionado prestígio. Para a estrutura social de então, ter um curso superior e passar a ser tratado por “doutor” era uma distinção que equivalia, longinquamente e a seu modo, a um título nobiliárquico, dado ser esta uma das poucas diferenciações de classe ainda reconhecidas pelo geral da sociedade. De outro lado, os cursos universitários exigiam dos estudantes real esforço e aplicação, sem o que não conseguiriam terminá-los. Assim, era pequeno, comparado com o restante da população, o número dos que chegavam a colar grau, ao contrário do que ocorre em nossos dias, em que o significado de tal é tão menor.
Por isso a cerimônia de entrega dos diplomas, que conservava ainda restos das antigas tradições das universidades medievais, se revestia de grande solenidade. Máxime em se tratando da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, uma das mais antigas do Brasil.
O ato se desenrolava na Aula Magna da Faculdade, em presença de todo o corpo docente, que comparecia revestido de beca — traje talar cuja origem remonta à Idade Média —, de autoridades do Estado e dos familiares dos formandos. Os alunos deviam trajar-se de gala, ou seja, com o tradicional fraque, resto mutilado e sóbrio das vistosas casacas do Ancien Régime. Era justo que num momento auge da vida de um homem, ele fosse honrado publicamente por seus méritos num ato ao qual o protocolo conferia a devida gravidade.
Desde a infância Plinio conservava um sistemático desinteresse pela freqüência ao alfaiate, devido ao sumo aborrecimento que era para ele provar roupas. E, malgrado as repetidas advertências de Dona Lucilia, mandou fazer com um pouco de atraso o fraque, sem o qual não podia comparecer à cerimônia de graduação. Chegado o dia da solenidade, a roupa encomendada não estava pronta. Dona Luci1ia ficou preocupada, pois conhecia a displicência de seu filho em relação a esses atos um tanto laicos, e tinha receio de que ele chegasse atrasado, ou até mesmo não comparecesse, o que podia ser interpretado como manifestação de pouco caso em relação ao importante evento.
Logo de manhã, ela o chamou e perguntou:
— Filhão, seu fraque não veio do alfaiate ainda?
— Não, mamãe, mas ele prometeu entregá-lo à 1 hora da tarde.
Ora, a cerimônia estava marcada para as 2 horas. Qualquer imprevisto que acontecesse impossibilitaria a presença de Plinio. Como era natural, Dona Lucilia começou a ficar angustiada pois, sempre previdente, não podia deixar de considerar provável a pior hipótese.
— Mas meu filho — disse ela — você não vê que, se o alfaiate se atrasar, você perderá  cerimônia?
Naquelas circunstâncias não havia outra coisa a fazer senão esperar, e ele procurou tranquilizá-la:
— Não, mãezinha, essas coisas costumam correr bem, porque o alfaiate tem muita experiência e provavelmente vai me entregar conforme prometeu.
Ela não disse mais nada. O tempo foi passando e... o alfaiate não aparecia. A hora de saírem para a Faculdade de Direito, Plinio não estava pronto. Ele então recomendou a Dona Lucilia e a Dona Rosée que fossem antes, para pegar um bom lugar; ele iria pouco depois.
Mais ou menos à hora marcada começa a cerimônia. Executa-se o hino nacional, o diretor da Faculdade declara aberta a sessão. Um dos alunos agradece em nome dos demais, e pronuncia seu discurso, ressaltando a gravidade da situação do país e a responsabilidade que assumiam os bacharéis de batalhar pelos interesses da Nação. Um jovem professor, paraninfo dos graduandos, diz eloquentes palavras de estímulo aos novos homens de leis, que iniciariam sua caminhada na vida profissional. Este último orador é homenageado. E assim vai transcorrendo o solene ato até que se inicia o tão esperado momento da entrega dos diplomas. Cuidadosamente enrolados, quais preciosos pergaminhos, de cada um pendia a fita com o lacre da Faculdade.
Plinio ainda não havia chegado. E Dona Lucilia, naturalmente, preocupadíssima pelo fato de ele não estar ali a tempo.
A entrega dos diplomas era feita por ordem alfabética, O reitor pessoalmente cumprimentava os formandos e dizia umas palavras de felicitações aos que em especial se tinham destacado, o que tornava a cerimônia bastante demorada. E da letra A até a P ainda havia uma certa margem de tempo. Mas à medida que os nomes iam sendo declinados e a vez do P de Plinio se aproximava, Dona Lucilia ia ficando mais preocupada, lançando olhares discretos e perscrutadores para a porta de entrada, na esperança de ver seu filho chegar. Rosée, que tinha muita vivacidade, ainda se lembrou de levantar a hipótese de ter ocorrido algum acidente de automóvel com Plinio, pois, devido ao atraso, deveria ter obrigado o chauffeur a correr muito. A simples hipótese aumentou ainda mais a aflição de Dona Lucilia.
Quando estavam aplaudindo o bacharel cujo nome antecedia o de Plinio, este último entrou na sala e tomou assento em seu lugar. O alívio de Dona Lucilia foi imenso, O nome dele foi proclamado: Plinio Corrêa de Oliveira, Ele se levantou, foi receber o diploma, cumprimentou o reitor, os professores e depois, sendo costume os neo-advogados saudarem os pais e familiares presentes, dirigiu-se até onde estava Dona Lucilia e demais parentes. Apesar da angústia pela qual passara, ela nada deixou transparecer, nem lhe fez a mínima observação, pelo que seu filho não pôde imaginar que ela tivesse tomado aquilo ao trágico.
Terminada a solenidade, voltaram juntos à casa, onde estava preparada uma festa para ele e para um de seus primos, com o qual havia feito os estudos e que também se formara naquele dia. Quando a efusividade dos cumprimentos e das felicitações do primeiro momento baixou, o velho copeiro Luís aproximou-se de Dr. Plinio e lhe disse, com sua voz cantante:
— Seu Plinio, Dona Lucilia quer falar com o senhor. Ela está no quarto dela.
Dr. Plinio dirigiu-se imediatamente para lá, e enquanto caminhava pensava no que poderia ser: “Estará ela doente? Não parece. O que será? Algum aborrecimento?”
Quando entrou no quarto, Dona Lucilia, para pasmo do filho, fechou a porta e se ajoelhou diante dele. Imediatamente, com palavras de afeto, procurou em vão soerguê-la. Por fim, ela lhe disse com muita gravidade:
— Eu sofri hoje uma das maiores provações de minha vida, e quero te pedir, pelo amor de Deus, nunca mais faças isto com tua mãe, nunca mais repitas um corre-corre destes e te atrases em atos solenes. Onde é que se viu!... Estavam presentes teus professores, estavam presentes teus colegas, estava presente a Faculdade inteira e só tu chegaste atrasado? O que é que vão dizer?
A hipótese levantada por Dona Rosée de ter havido um acidente no caminho não lhe saiu da mente e, quiçá pressentindo o futuro desastre de automóvel que seu filho sofreria,1 ela prossegue:
— Vais me prometer que jamais assumirás o risco de correr tanto de automóvel, para que não sofras um desastre, coisa da qual tenho muitíssimo medo. Meu filho, tu me prometes isto?
Dr. Plinio, para tranquilizá-la, gracejou um pouco, riu, mas ela se manteve irredutível e insistiu:
— Não estou brincando, isto é muito sério. E tu hás de me fazer essa promessa de nunca correr de automóvel, para não haver nenhum desastre. Tu me prometes?
Dr. Plinio, já conhecedor daquelas serenas intransigências, viu-se obrigado a ceder para poder tranquilizá-la, e o fez de bom grado. Só após isso é que ela acabou se levantando. Assim ela sossegou, abençoou-o, beijou-o e foram normalmente participar da festa, que transcorria com alegria. Muitos anos mais tarde, ao recordar aquele dia da formatura de seu filho, ela ainda comentava:
— Ah! Que agonia passei naquela tarde...
Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de Mons. João S. Clá Dias,EP

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