Naquele tempo, em que sociedade
estava menos corroída pelo igualitarismo do que hoje, as atividades
intelectuais eram ainda cercadas de proporcionado prestígio. Para a estrutura
social de então, ter um curso superior e passar a ser tratado por “doutor” era
uma distinção que equivalia, longinquamente e a seu modo, a um título
nobiliárquico, dado ser esta uma das poucas diferenciações de classe ainda
reconhecidas pelo geral da sociedade. De outro lado, os cursos universitários
exigiam dos estudantes real esforço e aplicação, sem o que não conseguiriam
terminá-los. Assim, era pequeno, comparado com o restante da população, o
número dos que chegavam a colar grau, ao contrário do que ocorre em nossos
dias, em que o significado de tal é tão menor.
Por isso a cerimônia de entrega
dos diplomas, que conservava ainda restos das antigas tradições das
universidades medievais, se revestia de grande solenidade. Máxime em se
tratando da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, uma das mais
antigas do Brasil.
O ato se desenrolava na Aula
Magna da Faculdade, em presença de todo o corpo docente, que comparecia
revestido de beca — traje talar cuja origem remonta à Idade Média —, de
autoridades do Estado e dos familiares dos formandos. Os alunos deviam
trajar-se de gala, ou seja, com o tradicional fraque, resto mutilado e sóbrio
das vistosas casacas do Ancien Régime. Era justo que num momento auge da vida de
um homem, ele fosse honrado publicamente por seus méritos num ato ao qual o
protocolo conferia a devida gravidade.
Desde a infância Plinio conservava
um sistemático desinteresse pela freqüência ao alfaiate, devido ao sumo
aborrecimento que era para ele provar roupas. E, malgrado as repetidas
advertências de Dona Lucilia, mandou fazer com um pouco de atraso o fraque, sem
o qual não podia comparecer à cerimônia de graduação. Chegado o dia da
solenidade, a roupa encomendada não estava pronta. Dona Luci1ia ficou
preocupada, pois conhecia a displicência de seu filho em relação a esses atos
um tanto laicos, e tinha receio de que ele chegasse atrasado, ou até mesmo não
comparecesse, o que podia ser interpretado como manifestação de pouco caso em
relação ao importante evento.
Logo de manhã, ela o chamou e
perguntou:
— Filhão, seu fraque não veio
do alfaiate ainda?
— Não, mamãe, mas ele prometeu
entregá-lo à 1 hora da tarde.
Ora, a cerimônia estava marcada
para as 2 horas. Qualquer imprevisto que acontecesse impossibilitaria a
presença de Plinio. Como era natural, Dona Lucilia começou a ficar angustiada
pois, sempre previdente, não podia deixar de considerar provável a pior
hipótese.
— Mas meu filho — disse ela — você
não vê que, se o alfaiate se atrasar, você perderá cerimônia?
Naquelas circunstâncias não
havia outra coisa a fazer senão esperar, e ele procurou tranquilizá-la:
— Não, mãezinha, essas coisas
costumam correr bem, porque o alfaiate tem muita experiência e provavelmente
vai me entregar conforme prometeu.
Ela não disse mais nada. O
tempo foi passando e... o alfaiate não aparecia. A hora de saírem para a Faculdade
de Direito, Plinio não estava pronto. Ele então recomendou a Dona Lucilia e a
Dona Rosée que fossem antes, para pegar um bom lugar; ele iria pouco depois.
Mais ou menos à hora marcada começa
a cerimônia. Executa-se o hino nacional, o diretor da Faculdade declara aberta
a sessão. Um dos alunos agradece em nome dos demais, e pronuncia seu discurso, ressaltando
a gravidade da situação do país e a responsabilidade que assumiam os bacharéis
de batalhar pelos interesses da Nação. Um jovem professor, paraninfo dos graduandos,
diz eloquentes palavras de estímulo aos novos homens de leis, que iniciariam
sua caminhada na vida profissional. Este último orador é homenageado. E assim
vai transcorrendo o solene ato até que se inicia o tão esperado momento da
entrega dos diplomas. Cuidadosamente enrolados, quais preciosos pergaminhos, de
cada um pendia a fita com o lacre da Faculdade.
Plinio ainda não havia chegado.
E Dona Lucilia, naturalmente, preocupadíssima pelo fato de ele não estar ali a
tempo.
A entrega dos diplomas era
feita por ordem alfabética, O reitor pessoalmente cumprimentava os formandos e
dizia umas palavras de felicitações aos que em especial se tinham destacado, o
que tornava a cerimônia bastante demorada. E da letra A até a P ainda havia uma
certa margem de tempo. Mas à medida que os nomes iam sendo declinados e a vez
do P de Plinio se aproximava, Dona Lucilia ia ficando mais preocupada, lançando
olhares discretos e perscrutadores para a porta de entrada, na esperança de ver
seu filho chegar. Rosée, que tinha muita vivacidade, ainda se lembrou de
levantar a hipótese de ter ocorrido algum acidente de automóvel com Plinio,
pois, devido ao atraso, deveria ter obrigado o chauffeur a correr muito. A
simples hipótese aumentou ainda mais a aflição de Dona Lucilia.
Quando estavam aplaudindo o
bacharel cujo nome antecedia o de Plinio, este último entrou na sala e tomou
assento em seu lugar. O alívio de Dona Lucilia foi imenso, O nome dele foi
proclamado: Plinio Corrêa de Oliveira, Ele se levantou, foi receber o diploma,
cumprimentou o reitor, os professores e depois, sendo costume os neo-advogados
saudarem os pais e familiares presentes, dirigiu-se até onde estava Dona
Lucilia e demais parentes. Apesar da angústia pela qual passara, ela nada
deixou transparecer, nem lhe fez a mínima observação, pelo que seu filho não
pôde imaginar que ela tivesse tomado aquilo ao trágico.
Terminada a solenidade, voltaram
juntos à casa, onde estava preparada uma festa para ele e para um de seus
primos, com o qual havia feito os estudos e que também se formara naquele dia.
Quando a efusividade dos cumprimentos e das felicitações do primeiro momento
baixou, o velho copeiro Luís aproximou-se de Dr. Plinio e lhe disse, com sua
voz cantante:
— Seu Plinio, Dona Lucilia quer
falar com o senhor. Ela está no quarto dela.
Dr. Plinio dirigiu-se imediatamente
para lá, e enquanto caminhava pensava no que poderia ser: “Estará ela doente?
Não parece. O que será? Algum aborrecimento?”
Quando entrou no quarto, Dona
Lucilia, para pasmo do filho, fechou a porta e se ajoelhou diante dele.
Imediatamente, com palavras de afeto, procurou em vão soerguê-la. Por fim, ela
lhe disse com muita gravidade:
— Eu sofri hoje uma das maiores
provações de minha vida, e quero te pedir, pelo amor de Deus, nunca mais faças
isto com tua mãe, nunca mais repitas um corre-corre destes e te atrases em atos
solenes. Onde é que se viu!... Estavam presentes teus professores, estavam
presentes teus colegas, estava presente a Faculdade inteira e só tu chegaste
atrasado? O que é que vão dizer?
A hipótese levantada por Dona
Rosée de ter havido um acidente no caminho não lhe saiu da mente e, quiçá
pressentindo o futuro desastre de automóvel que seu filho sofreria,1 ela
prossegue:
— Vais me prometer que jamais assumirás
o risco de correr tanto de automóvel, para que não sofras um desastre, coisa da
qual tenho muitíssimo medo. Meu filho, tu me prometes isto?
Dr. Plinio, para tranquilizá-la,
gracejou um pouco, riu, mas ela se manteve irredutível e insistiu:
— Não estou brincando, isto é
muito sério. E tu hás de me fazer essa promessa de nunca correr de automóvel,
para não haver nenhum desastre. Tu me prometes?
Dr. Plinio, já conhecedor
daquelas serenas intransigências, viu-se obrigado a ceder para poder tranquilizá-la,
e o fez de bom grado. Só após isso é que ela acabou se levantando. Assim ela
sossegou, abençoou-o, beijou-o e foram normalmente participar da festa, que transcorria
com alegria. Muitos anos mais tarde, ao recordar aquele dia da formatura de seu
filho, ela ainda comentava:
— Ah! Que agonia passei naquela
tarde...
Transcrito,
com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de Mons. João S. Clá Dias,EP
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