Além dos episódios acima narrados, algo nos dá, com
indiscutível autenticidade, uma noção bem aproximada das reações psicológicas
de Dona Lucilia em meio às belezas e encantos de Paris.
Estava-se no princípio do século XX. A arte fotográfica já se desenvolvera bastante, embora não tivesse atingido as perfeições de nossos dias. Eram os bons tempos das fotos com pose, estudadas, planejadas, muito demoradas. Não raras vezes se igualavam a uma pintura, ou até a excediam no figurar a realidade. As fotos de Dona Lucilia, tiradas nesse período, bem ilustram tudo o que sobre ela se tem dito nesta seção.
Desejando guardar recordações que, aliás, atravessariam as
décadas, reservou ela um dia para ir com sua mãe, seu esposo e seus filhos a um
bom fotógrafo. Este soube interpretar-lhe a psicologia, procurando deixá-la em
seu natural. O vestido de gala com que aparece retratada é distinto e de alta
qualidade, mas sem ostentação de riqueza. Não o copiou de um catálogo, nem foi
proposto por algum costureiro. Seus trajes eram planejados por ela mesma em
todos os pormenores, depois de folhear diversos figurinos. Pensava
meticulosamente em tudo, nas combinações de cores, nas formas e, desde que não
contrariassem a moral, adaptava-se às circunstâncias e à moda do momento.
Era comum possuírem os fotógrafos, em seus estúdios, objetos
decorativos para montarem um cenário de acordo com o gosto dos clientes. O
fundo de quadro que aparece atrás de Dona Lucilia corresponde a um misto de
tempestade e de luz clara, emoldurando uma cena imaginária ao ar livre, ela
sentada no banco de um jardim.
Sua leveza de atitude denota distinção, categoria e
delicadeza de alma. No gesto da mão com o leque transparece nobreza; a posição
da outra mão, apoiando a cabeça, sugere elevação de espírito e o hábito de
meditar que tanto a caracterizavam. As sobrancelhas, espessas, bastante escuras
e definidas, exprimem a precisão e a força de sua personalidade. O traçado do
arco simboliza talvez sua firmeza de caráter, em nada concessivo ao mal. No seu
modo de ser destacam-se alguns aspectos: distensão, bondade, suave tristeza,
resignação e muita energia de alma para ser fiel às vias da Providência. O
olhar, além de sério, é firme, reflexivo e analítico. Ocorria-lhe amiúde
analisar as almas, sob o prisma da obrigação de serem boas umas com as outras.
Também estão unidas, em sua figura, gravidade e suavidade, virtudes muito
difíceis de se conjugar.
De pé, numa escada
Sempre muito digna, composta e virtuosa, Da. Lucilia não
tinha necessidade de lançar mão de meios que maquiassem aspectos desagradáveis
de sua personalidade. Ela era admirável em tudo. Por mais que um fotógrafo lhe
sugerisse atitudes inautênticas, isto é, não condizentes com seu verdadeiro
modo de ser, não encontraria ressonância da parte dela. É o que se nota em
outra fotografia sua, tirada na mesma ocasião. Desta feita, o fundo de quadro é
uma escadaria. O ar nobre e natural com que Dona Lucilia se apresenta, condiz
bem com o alto grau de virtude atingido por ela na calma e na serenidade. Em
seu olhar não se percebe a menor preocupação com o fotógrafo, mas sim com
assuntos mais elevados. Igualmente não é intenção dela impressionar quem de
futuro veja a fotografia.
Nada há de autoritário em sua atitude mas sim a doçura e
afabilidade características de quem se habituou a ser sempre obedecida com
afeto e sem resistência. Dir-se-ia que foi surpreendida pela objetiva ao descer
com inteira naturalidade os degraus da escada.
O tule — concebido por ela como adorno — em suas mãos parece
mais diáfano que uma nuvem e to ma um ar imponderável de leveza e distinção
quase de conto de fadas, realçando seus expressivos gestos. A alvura do vestido
e a singeleza das jóias são outros tantos reflexos de sua alma. Contudo, nada
suplanta a luminosa bondade refletida em seu semblante e, sobretudo, em seu
olhar.
Chorando por deixar a França...
Chega, afinal, o dia da partida. Grandes malas, alguns baús,
caixas, tudo se empilha ordenadamente na Gare de Lyon, à espera de embarcar no
trem que levaria Dona Lucilia, seus filhos e a governante a Gênova.
São os últimos momentos de permanência na Cidade Luz. Na
hora aprazada, um apito, e lá se vai o trem... Estando as crianças nas mãos da
Fräulein, Dona Lucilia, recostada junto à janela, contempla a Paris que passa e
talvez nunca mais volte. Meditativa como sempre, põese a pensar em tudo o que
tinha visto na França, enquanto algumas lágrimas lhe rolam pela face. O trem
acelera. Ao longe, a agulha da Torre Eiffel vai ficando o único ponto de
referência. Junto a esta corre o Sena. A imaginação de Dona Lucilia voa até a
outra margem, onde estão a Place de L ’Étoile, a Avenue de Friedland, o Rond
Point, l’Opéra, o Louvre, o Sacré Coeur de Montmartre, a Sainte Chapelle,
Notre-Dame... “Ah! Como todo esse conjunto magnífico ficou para trás!” — pensa
ela pesarosa.
A família está a caminho de Roma, na esperança de um
encontro com o Papa, ponto de honra para todo católico. Na época, nada mais
nada menos do que o grande São Pio X. A perspectiva de receber a bênção de um
pontífice que, já em vida, tinha fama de santidade, suavizava um tanto as dores
de Dona Lucilia por abandonar sua cidade preferida. Entretanto — oh tristeza! —
chegando a Gênova não foi possível seguir viagem, porquanto grassava uma
epidemia na Cidade Eterna. Foram obrigados, naquele porto italiano, a tomar um
navio e regressar ao Brasil.
O Velho Continente não mais seria contemplado pelo enlevado
olhar de Dona Lucilia. Entretanto, de tudo guardaria uma inesquecível
lembrança. Os dias de sua existência, até o último momento, foram marcados com
a silhueta de todos os símbolos e feerias da Cristandade.
Um grande consolo a acompanhou na viagem de retorno ao
Brasil: ter podido proporcionar a seus queridos filhos um contato direto com as
arquetipias da vida social, do relacionamento humano e da cultura. Com base
nessas riquezas de espírito, ela daria continuidade à esmerada educação deles.
(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João
S. Clá Dias.)
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