sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Recordações de Pernambuco

Como vimos no post anterior,  Dª Lucilia, após muito rezar e refletir, aceitou a proposta de  casamento com Dr . João Paulo Corrêa de Oliveira, sendo o matrimônio celebrado no dia 15 de julho de 1906, com um esplendor nupcial que marcou época na capital paulista.
Quem era aquele que, doravante,  partilharia com ela as venturas e vicissitudes da vida?
Descendente de Senhores de Engenho
Pertencente a ilustre estirpe de Senhores de Engenho, Dr. João Paulo recém chegara de Pernambuco. Hábil advogado, dotado de grande inteligência e cultura, suas finas maneiras e agradável prosa impressionaram de modo favorável a Dr. Antônio e Dª Gabriela, que por isso decidiram conceder-lhe a mão da filha.
Seu tio, o famoso Conselheiro João Alfredo Corrêa de Oliveira, fora das mais eminentes personalidades da última fase do Império. Após ocupar sucessivamente os cargos de Presidente das Províncias1 do Pará e de São Paulo, e Ministro da Justiça no gabinete do Visconde do Rio Branco, chegou a presidir o Conselho de Ministros do Império. Foi ele quem referendou a “Lei Áurea”, de libertação dos escravos.
Conselheiro João Alfredo Corrêa de Oliveira
Após um passado de fartura, proporcionada pela exportação de açúcar, a maior parte das famílias tradicionais de Pernambuco, entre as quais os Corrêa de Oliveira, viu-se bastante empobrecida. Razão disso foi a invenção do açúcar de beterraba por técnicos alemães, o que levou os países europeus, no último quartel do século XIX, a cessarem quase por completo a importação do produto.
Quando criança, Dr. João Paulo ainda alcançara o fausto e a movimentação algo palaciana da casa dos Corrêa de Oliveira. Para animar os encontros familiares havia até um “bobo da corte”, chamado Marcelo, o qual tinha fama de ser bem engraçado.
Esse Pernambuco de alguns luzimentos do passado não ficou sem conhecer a Dª Lucilia…
Na “Veneza brasileira”
Desde os remotos tempos coloniais, Pernambuco desempenhara no Nordeste, ainda que em menores proporções, papel semelhante ao de São Paulo no Centro-Sul. Mais no que diz respeito ao modo de encarar a vida do que do ponto de vista econômico. Seus habitantes e em especial suas elites sobressaíam por notável senso de governo, pela seriedade do trato, pelo estilo de relações a um tempo senhorial e ameno, no qual se podia distinguir uma graciosa nota francesa dentro de um contexto profundamente brasileiro. A energia e a vitalidade características dos grandes feitos pernambucanos ficaram imortalmente consignadas na epopéia de Guararapes, momento decisivo no qual o Brasil tomou consciência de seu futuro como nação formada em torno de uma só Fé e uma só língua. Não faltam a Pernambuco, a contrastar com a paisagem austera do sertão, mares de verde-esmeralda cintilante, além do charme de uma capital, qual nova Veneza, colocada em meio às águas.
Dona Lucilia, na viagem de lua-de-mel à terra natal de seu esposo, terá de enfrentar uma circunstância penosa, visto não estar acostumada a longos percursos marítimos como o do Rio a Recife. Entretanto, de acordo com a tendência em extremo benévola de seu espírito, sua atenção não deixará passar despercebido nada do que encontrar de atraente ao longo do caminho.
A penúltima etapa do trajeto era Goiana, pitoresca cidade situada nos confins de Pernambuco com a Paraíba. Não distante do litoral, ligada ao rio Japomim por um canal navegável, construído no tempo do Império — símbolo da época em que a exportação da cana-de-açúcar fizera a riqueza da região — acariciada por suave brisa e salpicada de coqueiros e palmeiras, a cidade tinha um ar deliciosamente tropical. Uma estrada levava, não longe dali, ao Engenho Uruaé, a herdade dos Corrêa de Oliveira.
Ao chegar ao local, Dª Lucilia ainda encontrou muito da atmosfera que lembrava épocas de esplendor, quando as baixelas eram todas de prata, ajudantes numerosos e um luxo distinto transparecia nos menores aspectos da vida. Embora aquilo tudo já pertencesse ao passado, a vida no engenho ainda era farta, bem ao estilo brasileiro.
Afabilidade e temperança numa dadivosa natureza
A fazenda se organizava em função do cultivo de cana-de-açúcar, e todos, quer patrões, quer trabalhadores, viviam em invejável sossego. Senhoras sempre muito puras, homens sumamente respeitadores, contentamento geral nas reuniões de família, apesar dos reveses econômicos suportados com firmeza de espírito, eram traços que caracterizavam o ambiente que acolheu Dª Lucilia e que sobremaneira a compraziam. Uma das distrações dos moradores dos engenhos circunvizinhos consistia em se dirigirem a Goiana, à noite, e se reunirem numa das nove belas igrejas coloniais da cidade, a fim de rezar. Terminadas as orações, saíam em grupos para irem tomar chá com parentes ou amigos. Só depois de boa prosa, já noite avançada, voltavam às respectivas residências.
Outra distração interessante dos Corrêa de Oliveira consistia em fazer passeios de barco até uma casa que possuíam à beira-mar. Na ida aproveitavam a correnteza do Rio Goiana. Na hora de voltar, nem sequer se davam ao trabalho de empurrar o barco para a água: deixavam-no sobre a areia, e nele entravam no começo da noite, ficando à espera de que a maré subisse. Levando instrumentos de música e farnéis repletos de alimentos, passavam a noite toda saboreando iguarias, a cantar, tocar viola e gracejar, até chegarem ao ancoradouro de onde tinham partido.
Era uma vida tranquila e divertida, mas conduzida com recato se sem gastos demasiados, para o que concorria a dadivosa natureza. A título de exemplo, Dª Lucilia contava que, sendo o canal muito piscoso, era fácil para qualquer pessoa apanhar grande número de peixes.
Figuras do Engenho Uruaé
Em meio a essas numerosas impressões, a atenção de Dª Lucilia se voltou de modo especial para um negrinho, criado no engenho, que ficara cego de uma vista em virtude de um acidente. Com a alma transbordante de pena, ouviu o relato do que lhe acontecera: durante uma caçada, acompanhando um irmão de Dr. João Paulo, o menino foi atingido no olho por um chumbo, que o privou definitivamente daquela vista. Tempos depois, estando o Bispo diocesano de passagem pela fazenda para  ministrar o Sacramento da Crisma,  a vítima pediu ao involuntário fautor de sua cegueira que fosse seu padrinho. Todos entenderam que era a maneira jeitosa de ele se candidatar a uma pensãozinha. A ideia agradou e foi aceita.
No dia da cerimônia, o padrinho compareceu, levando presentes. A partir daí, nasceu o costume de o afilhado procurá-lo em casa, de tempos em tempos, apresentando-se com charme especial e dizendo em alta voz:
— Meu padrinho! Boa tarde!
Todos na família gostavam dele e o favoreciam quanto podiam. Encantou a Dª  Lucilia  este episódio, pois  realçava  a  harmonia  reinante  entre as classes sociais, a qual aliava  ao respeito uma bonomia afetuosa.
Dona Lucilia conheceu também, em Uruaé, dois cunhados, cegos de nascença, que encaravam sem revolta as agruras da vida, e lograram superar  tão  terrível  problema  desenvolvendo particular senso de percepção. Quando ela e o esposo, acabada a temporada no engenho, partiram para o Recife, onde tomariam o navio para Santos, vários parentes quiseram acompanhá-los, entre os quais um dos animosos cegos. Em determinado momento, quando todos conversavam, sentados em sofás no saguão de um hotel, atravessou-o  de ponta a ponta uma moça. O cego voltou-se para Dª Lucilia e disse:
— Que bonita moça, hein, Lucilia?
Surpresa com o comentário, esta perguntou:
— Como você sabe?
Rindo, o cunhado respondeu:
— Você não faz ideia, mas, prestando atenção no modo de esta moça andar, consigo perceber se ela é bonita ou feia…
Desse fato Dª Lucilia sempre se lembrará com muito comprazimento, porquanto considerava com simpatia aqueles que, no meio dos piores infortúnios, não se deixavam abater pelo desânimo, mas, serena  e  resignadamente,  levavam  a  vida  adiante. 
(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)

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