Já bem perto de sua passagem para a eternidade, ainda se ouvia Dª Lucilia narrar com atraente singeleza os episódios que, na época de sua juventude, presenciara no palacete Ribeiro dos Santos, tão perfumado pelos distintos aromas da Belle Époque. Retomemos sua história visitando-o, e acompanhemos de perto as reações de um copeiro, ao conhecer aquela mansão, quando de sua chegada a São Paulo.
Um filho de colonos na capital
Entre a multidão que apressadamente desce dos vagões à procura de parentes, ou em demanda do ponto de tílburis mais próximo da Estação da Luz, passa quase despercebida a pequena e delgada figura de um negrinho, cujas atitudes denunciam o campônio que pela primeira vez pisa o chão da capital. Olhos grandes e vivazes, vai ele arrastando uma trouxa, estação afora, boquiaberto com a dimensão e as belas linhas do edifício. Ao sair à rua, uma estranheza: onde está o cafezal, seu cenário tão familiar? Zezinho — é o seu apelido — que só concebe o mundo à maneira de sua terra natal, no Noroeste paulista, cobertos por renques de arbustos da rubiácea, decide atravessar o lindo Jardim da Luz, esperando, talvez, encontrá-los do outro lado...
Filho de colonos da fazenda de Dr. Gabriel — irmão de Dª Lucilia — Zezinho chega a São Paulo par servir de copeiro na casa do patrão. Muito expansivo, começa em pouco tempo a dar pitorescas “entrevistas” sobre as impressões que a cidade lhe causa.
Um dia obtém licença para ir ao palacete Ribeiro dos Santos, a fim de satisfazer sua curiosidade.
Entre sedas e porcelanas européias
É domingo à tarde, quase todos saíram, as salas estão vazias. Depois de conhecer, no andar térreo, os bem-organizados aposentos para hóspedes e as dependências para empregados, que lhe pareceram primorosas, Zezinho percorre os cômodos do andar superior indicados pelas criadas.
Começa pela grande sala de jantar. Mal penetra no local, sente que a numerosa e bem-trabalhada mobília de carvalho, a um tempo grave e elegante, impõe um comportamento digno, sem entretanto intimidar. Um sofá de couro, acompanhado de duas poltronas do mesmo estilo, duas cadeiras de balanço, alguns quadros a óleo de renomados pintores e, especialmente, um grande tapete persa, acrescentam um toque ameno ao belo conjunto decorado por um artístico lambri de madeira que o reveste em toda a extensão.
Peças de um dos serviços de chá de Dona Lucilia |
Sem conter a curiosidade, Zezinho abre um pesado armário. Fica assombrado com a quantidade e variedade de serviços de jantar e de chá, bandejas, salvas, compoteiras, fruteiras, jarras, pratos e talheres — em porcelana, cristal, madrepérola ou prata, franceses e ingleses — sobressaindo um serviço de cristal de Baccarat, com 189 peças, e outro de porcelana de Limoges.
Caminhando pensativo, Zezinho entra devagar na sala de visitas menor, que encontra envolta em ligeira penumbra. Entre os móveis se destacam um confortável sofá, uma mesinha de chá e uma escrivaninha. Dominando o ambiente, a lembrar serões familiares, um piano. Local destinado a receber pessoas cujo convívio pode ser menos pomposo, a sala faz ressaltar uma combinação harmônica de intimidade com elevação.
“Que beleza”! — exclama Zezinho para si mesmo, deixando-se ficar ali algum tempo. Caminha no macio dos ricos tapetes, apalpa a seda das cortinas e observa as circunspectas e amáveis fisionomias dos antepassados daquela família, retratados nos quadros. Zezinho não sai da sala sem antes notar ainda um lindo e nobre lustre feito de bronze dourado e cristal.
“Estou pensando nos que moram nesta casa...”
Tendo resolvido entrar no salão contíguo, não contém uma exclamação: “Como pode ser tão bonito?!” Desde logo fascinado pelo lugar, toma uma atitude respeitosa, sem poder definir se vê aquilo como uma capela ou um palácio. Chama-lhe imediatamente a atenção o efeito magnífico causado pelo conjunto dos móveis dourados e pelos papéis de parede da mesma cor, sobre os quais cintila a luz solar, que penetra pelos vãos das janelas apenas entreabertas. Enquanto caminha pisando de leve sobre o grosso tapete, sente-se adentrando um mundo feito de ouro. E as cortinas? Dignas, sérias, agradáveis, de excelente seda francesa de cor fraise, estampadas com floreado prateado e encimadas por sanefas de bronze polido. Nestas, laçarotes de veludos formam interessantes desenhos.
Jarro do Imperador |
Zezinho se detém maravilhado, pousando os olhos com vagar em cada detalhe: aqui um grande sofá dourado, com estofamento francês; na lateral, um grande e magnífico espelho; acolá, duas colunas douradas sobre as quais repousam vasos de alabastro com base e alças de bronze, que pertenceram ao Imperador Dom Pedro II.
Por fim, o rapaz abre outra porta e se vê no escritório, onde encontra um jovem a ler:
— Bom dia, senhor.
— Ô Zezinho, como vai você?
— Bem, obrigado.
Zezinho olha... olha... e ouve a pergunta:
— O que você está olhando, Zezinho?
— Estou pensando nos que moram nesta casa. Estou achando tudo tão bonito... — Reflete um pouco e acrescenta:
— Eu não compreendo por que essa gente rica de São Paulo gosta tanto de sair à rua. Cada um tem uma casa que é um céu! Por que não ficar nesse céu? Se eu tivesse uma casa como esta, eu passava o dia indo de uma sala para outra, olhando tudo, olhando tudo de novo... E quando acabasse de ver a última sala, eu voltava para a primeira. Tem tanta sala aqui, tem tanto quarto, para que sair, se a rua não é tão bonita...?
Distinção feita a Dona Gabriela no “baile branco”
Os ares aristocráticos da residência não causavam agrado só a pessoas como Zezinho, mas também a parentes e amigos da melhor sociedade, que continuamente a visitavam. Entretanto, muito mais do que a casa, atraía-os aquele ambiente familiar, fundamentalmente brasileiro, cuja cultura, modos de ser e tons eram marcados a fundo pela cultura francesa: a dignidade nobre, as maneiras compostas de seriedade, de distinção, de gentileza, nas quais a cerimônia e a amenidade andavam de par.
Sendo os Ribeiro dos Santos conhecidos por sua inigualável arte de bem conversar, freqüentes convites os levavam a reuniões sociais em casa de famosos nomes da história de São Paulo.
Na mansão de um magnata daquele tempo, o Conde Álvares Penteado, houve certa vez um memorável “baile branco”. Este nome indicava que todos os cavalheiros deveriam portar uma flor branca na lapela, e as damas trajar vestido de baile da mesma cor. Em outras ocasiõesas cores variavam, conforme ficasse estabelecido, e poderia haver, por exemplo, um “baile cor-de-rosa”.
Os bailes tinham início mais cedo do que hoje. A certa altura as danças eram interrompidas e, enquanto os convivas conversavam, os garçons terminavam os preparativos para o banquete. Afinal a orquestra tocava, anunciando estar tudo pronto, o anfitrião se dirigia a alguma dama que quisesse distinguir e se inclinava oferecendo-lhe o braço; o esposo da senhora assim escolhida fazia o mesmo com a dona da casa, formando-se em seguida os vários pares que se dirigiam em cortejo para a sala de jantar.
Muitos dias antes da festa promovida pelo Conde Penteado, já se previa que ela seria excepcionalmente brilhante, suscitando amistoso jogo de conjecturas, entre as senhoras, a respeito de quem receberia aquela particular consideração.
Chegado o momento, o conde não teve dúvida: atravessou a sala de um extremo a outro, em direção à roda onde conversava a mãe de Dª Lucilia, fez uma reverência e, estendendo-lhe o braço, disse:
— Dona Gabriela, a senhora quer me dar a honra?
Dr. Antônio, logo a seguir, convidou a Condessa Penteado a acompanhá-lo, e assim entraram na sala do banquete.
Dona Lucilia contará mais tarde, comprazida, esse episódio em que sua mãe fora tão honrada devido à sua natural e saliente distinção.
Naquele ambiente — todo feito de esplendores e cerimônia, realçado pela nobre e alegre nota francesa — permanecia vivo, em matéria de primeira importância como o convívio social, o belo aroma de cristã moralidade, que Portugal nos legara, país com o qual o Brasil formara, ainda não havia muito, um reino unido. Assim, marcada por tais características, a aristocracia paulistana harmonizou alguns de seus elementos fundamentais típicos: Fé, vida social e seleção.
(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias.)
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