O requintado ambiente que serviu de moldura à juventude de Dª Lucilia na antiga São Paulo merece uma análise mais detida, pois a muitos de nós que vivemos neste início do século XXI será talvez difícil vislumbrar o esplendor daquela sociedade aristocrática.
Tanto no Brasil como na França
Com efeito, o Brasil dos anos 1890-1914 desenvolveu uma apurada vida cultural e social que, de vários pontos de vista, ombreava com a europeia. As luzes que neste País refulgiram o fizeram mais intensamente em São Paulo, irradiando-se da antiga aristocracia para toda as classes. Em abono de tal afirmação podemos apelar, entre outros, para depoimentos insuspeitos como o de Clemenceau, atilado protagonista da alta política francesa, que em 1911 esteve visitando nossa pátria. Tomemos alguns excertos da série de artigos publicados pela prestigiosa revista L’Illustration, nos quais descreveu suas impressões de viagem:
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Georges Clemenceau |
“Nem o grande impulso da civilização em geral, nem a cultura francesa são novidades no Brasil. O Brasil é uma velha sociedade latina que já pode ostentar seus títulos de nobreza. [O fazendeiro], senhor feudal refinado, imbuído do pensamento europeu, é infinitamente superior à generalidade de seus similares do Velho Continente, quer os nascidos da tradição, quer os que surgiram dos acasos da democracia. Por todo lado testemunhamos sua preocupação em conhecer e em fazer, e notamos a brilhante manifestação de uma atividade transbordante . Em Paris, passa-se ao lado desse dominador sem recear, de tal maneira difere ele do estereótipo da sátira, por sua modéstia no falar e pela simplicidade de sua apresentação.
“Há afinidades demais entre os dois povos [o francês e o brasileiro] — do que me convenci a cada momento — para que, aos múltiplos atrativos desse grande e formoso país, não se some também, para um francês, a alegria de uma elevada comunhão de sentimentos e ideias numa nobre concórdia de esperanças e de vontades.
“Tive a inexprimível satisfação de o comprovar em meu primeiro contato com o grande público do Rio, e a experiência foi tão felizmente renovada em São Paulo que foi possível entregar-me sem reservas ao prazer de falar como francês a outros franceses, sem que nada me fizesse notar as particularidades de alma de um estrangeiro ao qual eu tivesse de me adaptar.
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Palacete Paulista |
“A cidade de São Paulo (350 .000 almas) é tão curiosamente francesa em alguns de seus aspectos que, durante toda uma semana, não me lembro de ter tido nem uma só vez a sensação de encontrar-me fora da França. O fato de a língua francesa ser ali correntemente falada, não é uma particularidade de São Paulo. A sociedade paulista apresenta o duplo fenômeno de se orientar de modo resoluto para o espírito francês e de, paralelamente, desenvolver todos os traços da individualidade brasileira que determinam o seu caráter. É indubitável que o paulista é paulista até o fundo da alma, paulista tanto no Brasil como na França ou em qualquer outro lugar. Isto posto, dizei-me se algum dia houve, sob as aparências de um homem de negócios ao mesmo tempo prudente e audacioso que soube valorizar o café, um francês de maneiras mais corteses, de conversação mais amável e de espírito mais aristocraticamente leve”1
Entardecer nos Campos Elíseos
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Palácio dos Campos Elíseos |
“São Paulinho”, em fins do século XIX ou começo do século XX. Estamos em pleno outono. Sopra uma fresca brisa no bairro dos Campos Elíseos, quando o sol, após um dia luminoso, vai com vagar declinando no horizonte, tingindo de um dourado — que logo depois será púrpura, tendo passado por vários tons de róseo — as claras paredes de nobres construções.
Dentro em breve terá início a cerimônia de troca da guarda, no Palácio dos Campos Elíseos, antiga residência de um “barão do café” e agora sede do governo estadual. A guarnição se apresentará em uniformes à francesa, pois a Força Pública (atual Polícia Militar) recebe instrução de uma missão vinda da França, sob o comando do General Nérel. Uma companhia sai do quartel próximo, ao som de clarins e tambores, e garbosamente marcha em direção ao palácio, sob as ramagens das imensas árvores de favas que se levantam em volta do edifício. Os soldados das guaritas rendem a guarda, os que chegam prestam continência e assumem o posto.
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General Nérel |
A tardinha vai baixando. Bandos de passarinhos fazem coro no arvoredo dos belos e espaçosos jardins das casas onde habitam as boas famílias, e aquele alegre palrar se difunde…O carrilhão da igreja do Coração de Jesus, com suas solenes badaladas, começa a impregnar de argênteos acordes a tranquilidade do bairro. São seis horas. A claridade se vai tornando cada vez mais tênue, a noite desce, é o momento de acender os lampiões de gás.
Enquanto os postes se iluminam um a um, vai tomando corpo uma garoa bem paulistana, ou uma densa neblina, que pelo efeito da luz fica toda prateada e, como vasto manto, envolve as pessoas. Quem dentro dela se vê é tomado pela impressão de ter as mãos e as roupas umedecidas, mas bastará uma leve fricção para as gotículas desaparecerem. E enquanto os pacatos bondes puxados a cavalo percorrem as ruas, pavimentadas com sólidos paralelepípedos, dentro da neblina, profundas sombras são projetadas pela iluminação das ruas.
O palacete Ribeiro dos Santos
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Palacete Ribeiro dos Santos |
Uma bela e espaçosa residência chama a atenção de quem atravessa a esquina da Alameda Barão de Limeira com a Alameda Glete, próxima do Palácio do Governo. A luz que filtra pelas rendas do cortinado sugere uma atmosfera interior nobre, serena e aconchegante, impressão acentuada por suave melodia cujas notas emanam de um piano eximiamente dedilhado. Da calçada, uma escadaria de uns quinze degraus — toda de mármore branco — leva-nos à entrada principal, no andar superior. Ao transpormos seus umbrais, ver-nos-emos em pleno palacete Ribeiro dos Santos…
Várias décadas mais tarde, já bem perto de sua passagem para a eternidade, ainda se ouvia Dª Lucilia narrar com atraente singeleza os episódios que, ao tempo de sua juventude, presenciara naquele lar tão perfumado pelos distintos aromas da Belle Époque. O que conheceremos nos próximos posts.
(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias.)
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